Ontem falamos de você, e me lembrei daquela tarde tão distante em que nós dois, sem um tostão no bolso, desanimados e calados, vínhamos pela Avenida e vimos aquela velhinha recebendo dinheiro. Você se lembra? Já estava escurecendo, mas ainda não tinham acendido as luzes, e paramos um instante na esquina de uma dessas ruas estreitas que cortam a Avenida. No guichê de uma casa de câmbio e viagens, ainda aberta, uma velhinha recebia maços de notas de conto de réis. Foi entulhando tudo na bolsa, depois saiu, com um passo miúdo, entrou pela ruazinha, onde as casas de comércio atacadista já estavam fechadas. Sem olhar um para o outro, demos alguns passos, fascinados, atrás da velha. Senti um estranho arrepio e ao mesmo tempo um tremor; meu coração parecia bater mais depressa, e era como se alguém me apertasse a garganta. A velhinha trotava em nossa frente, e não havia ninguém na rua. Era coisa de um segundo; arrancar a bolsa, tirar um daqueles maços de dinheiro, correr, dobrar a esquina. Nunca ninguém desconfiaria de nós – dois jornalistas pobres, quase miseráveis, mas de nome limpo. Naquele tempo nosso problema era dinheiro para andar de bonde no dia seguinte de manhã – e uma só daquelas notas daria para três meses de vida folgada, pagando a conta atrasada da pessoa, comprando pasta de dentes, brilhantina, meias, uma toalha, uma camisa, cuecas, lenços... Naquela idade para que precisava a velhinha de vestido preto de tanto dinheiro? Não teria nem mesmo tempo para gastá-lo. Além disso a gente não precisava tomar tudo, uma parte só chegava de sobra. É estranho que ao longo de nossa miséria crônica nunca tivéssemos pensado, nem por um minuto, em roubar; mas naquele momento a ideia surgiu tão subitamente e com tanta força que ficamos com um sentimento de frustração, de covardia, de vergonha e ao mesmo tempo de alívio quando, parados na calçada vimos a velha dobrar a esquina.

Só então falamos, num desabafo, daquele segundo horrível de tentação. E fomos tocando a pé, mais pobres e mais tristes, para tomar nosso bonde na Galeria e comer o mesquinho jantar da pensão sob os olhos da dona Maria, inquieta com o atraso do pagamento...

Acho que depois nunca nos lembramos dessa tarde – e não sei por que ela me voltou à memória outro dia. Acho que é porque um amigo falava do “quebra-quebra” de Belo Horizonte. Já assisti a um “quebra-quebra” aqui no Rio e nunca esquecerei aquela mistura de pânico, de furor, de alegria, de raiva, de medo, de cobiça e de libertação do povo. Às vezes fico maravilhado pensando que, durante anos e anos, as joalherias expõem joias caríssimas, e passam milhares de transeuntes pobres e nenhum arrebenta aquele vidro para agarrar uma joia. Não há de ser por medo – é mais por hábito, por uma longa e milagrosa domesticação. Nós dois sentimos aquele tremor quase angustioso, aquela vontade quase irresistível de desfechar um golpe rápido, nós sofremos aquele segundo de agonia – sentindo de uma maneira horrivelmente clara, que seria justo tomar uma parte do dinheiro da velha. E continuamos pobres (até hoje, Zico!) e seguimos nosso caminho de cabeça baixa (até hoje!) mas perdemos o direito de reprovar os que fazem o que não fizemos – por hesitação ou por estranha covardia.  

rubem-braga
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