RIO – Chego à janela de minha casa e vejo que umas coisas mudaram. Ainda está ali a longa casa das Martins, a casa surpreendente de dona Branquinha. Relembro os bigodes do coronel e as moças que estavam sempre brigando porque nossa bola batia nas vidraças. Jogávamos descalços na rua de pedras irregulares e tínhamos os dedos e unhas dos pés escalavrados e fortes. Vista de fora, pode parecer quente; mas ainda sinto na planta dos pés o frio bom dos ladrilhos da ampla sala toda aberta para a sombra doce do pomar de romãs e carambolas; atrás do pomar o rio chorando. Ali está ainda a casa de meus tios onde antes moraram os Leão e os Medeiros. Agora até meu tio morreu, e no lugar do pé de cajá-manga há uma mangueira; e um renque de acácias espanholas, amarelas e vermelhas, corre sob as janelas do lado. Vão construir no terreno em frente, onde havia aquela interminável família de negros e depois os cachorros de caça do Nilo Nobre. 

Estou cercado de lembranças – sombras, murmúrios, vozes da infância, preás, mandis e sanhaços; gosto de ingá na ilha do rio, fruta-pão assada com manteiga, fumegante, no café da tarde, lagostins saindo das ocas e passeando na areia nas tardes quentes, piaus vermelhos, lua atrás do Itabira, nomes que esquecera, aquela menina lourinha, filha de "seu" Duarte, que morreu, enterro alegre, de meu irmão, acho que Franscisquinho, como nós todos, esperando debaixo do caramanchão; e meu pai na cadeira de balanço, Zina guiando o Ford, bois passando para o matadouro, mulheres de lenço na cabeça descendo do Amarelo, vendendo ovos a um "florim" a dúzia; e escorregamos em folha de pita pelo morro abaixo até o açude... Mergulho nesse mundo misterioso e doce e passeio nele como um pequeno rei arbitrário que desconhece o tempo; ainda existe o colégio de Tia Gracinha, ainda existe o coqueiro junto da ponte do córrego; esfregamos nossos braços com urucu, e, para evitar frieira, temos sempre um barbante amarrado no tornozelo. São dezenas, centenas de lembranças graves e pueris que desfilam sem ordem, como se eu sonhasse. Entretanto uma parte desse mundo perdido ainda existe, e de modo tão natural e sereno que parece eterno; agora mesmo chupei um caju de 25 anos atrás. 

RIO – É extraordinário que eu esteja aqui, nesta casa, nesta janela; e ao mesmo tempo é completamente natural, e parece que toda minha vida fora daqui foi apenas uma excursão confusa e longa: moro aqui. Na verdade onde posso morar senão em minha casa? 

Abre-se uma janela do Centro Operário. Será a aula de dona Palmira em 1920 ou há reunião para discutir os estatutos? Durante toda a minha infância eles discutiam os estatutos. Eu não podia entender nada, mas havia pontos terrivelmente sérios. Era "Centro Operário de Proteção Mútua" ou "Centro Operário de Proteção Mútua"? Pela noite afora, ano após ano, um mulato meio velho e magro, de óculos, o dedo em riste, a voz rascante, atacava com extraordinária ferocidade aquele E. Não conseguiu derrubá-lo; os operários talvez se sentissem fracos, sozinhos, precisavam daquele E que os conjugava com outras camadas sociais. Ficou o E, meu pai foi diretor, e quando morreu teve auxilio no enterro, tudo sem ser operário tudo graças àquele E. Sem o E eu talvez não tivesse estudado ali, não me sentaria no comprido banco, onde o último à esquerda era o preto Bernardinho e à direita o rosto lindo de Lelia, com seus cabelos doces e uma covinha quando sorria. Quando não estavam discutindo os estatutos, ou providenciando um enterro de sócio, com a bandeira do Centro em cima do caixão, os operários E todos os que queriam proteção mútua estavam dançando; sons de pistom atravessam meu sono infantil; eu achava extraordinário e ao mesmo tempo alegre e feliz haver baile, na mesma sala onde eu tinha aulas. 

Bem, tenho de sair. Mas no momento em que vou deixar a janela vejo um homem que passa para baixo; é um velho com seu andar lento. É Chico Sapo. Inútil querer lembrar-lhe o nome. Talvez ele se zangue com esse; mas eu nunca soube de outro, e esse nome que a um estranho pode parecer engraçado a verdade é que ele tem para nós alguma coisa de nobre. Sim, é Chico Sapo, o ferreiro, pai de Manuel Sapo e também de Pio Sapo, que agora me contam que morreu. É velho Chico Sapo, e nenhum rei da Inglaterra tem um nome mais nobre. Lá vai ele, no seu lento andar de sempre, mais velho e útil que o pé de fruta-pão, da idade talvez das águas do rio, e tão antigo e tão laborioso e tão Cachoeiro de Itapemirim como as águas do rio. Passa agora como passava na minha mais remota infância; trabalha através dos séculos, sério, calado e obscuro o velho Chico Sapo; e é sólido, respeitável e eterno. 

Quando volto ao Centro e olho de baixo para a Câmara Municipal, não é um trabalhador do tempo de minha infância que vejo. Mas é também um trabalhador que está ali, de pé, junto àquela porta, de componedor na mão com o mesmo assobio de 18 anos atrás. Lá está Helio Ramos diante de sua caixa de tipos. Eu estou longe daquele menino de 15 anos metido a fazer artigos, e meus amigos também envelhecem. João Madureira se lamenta da careca; sentimo-nos passar e estragar. Mas vemos lá em cima Helio Ramos no seu posto. 

Sou informado de que agora ele tem seis filhos e não apenas toca na banda como é maestro. Mas ali, de componedor na mão, é o mesmo Helio Ramos, grave e eterno, acumulando uma estranha nobreza no melhor valor dessa palavra, nobreza igual à de lorde Chico Sapo, à de "Sir" Orlando Sapateiro, nobreza de Cachoeiro de Itapemirim.

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