18 out 1963

De mim mesmo e da pinta de doutor

 

Fonte: Da quieta substância dos dias. São Paulo, IMS, 1991, pp. 101-104.

Sou inimigo de fraudes e falsificações, mesmo pensando como as fraudes e falsificações podem ser mais encantadoras e melhores do que as ditas coisas autênticas. Quer dizer que sou inimigo, em parte. Mas sou. E para ilustrar esta aversão, ainda que de um certo modo prosaico e sem arte, poderia invocar os meus não muitos velhos tempos de Farmácia Rosário, quando uma de minhas inveteradas manias era andar investigando a pureza e a qualidade dos produtos químicos e dos medicamentos, perturbando consequentemente os bons negócios de pobres-diabos que com eles traficavam. Era enorme essa minha trabalheira de detetive de laboratório, policiando, farejando com testes e reações, às vezes durante dias a fio, o que estava errado com uma ou outra droga. "O que é que você ganha com isso?" – me perguntavam. Pois as despesas também não eram poucas. E logo se seguia um argumento, com ares de campeão do bom senso, aposentado: "Nenhuma farmácia faz assim". Eu sabia. Nenhuma farmácia fazia assim. E acredito que ainda não faça. Pouco me importa, entretanto, que não fizesse. Era o meu hábito de não concordar com descuidos e velhacarias; o meu gosto de pôr em prática as teorias aprendidas nos livros, de não esquecer sobre os meus balcões a dignidade intelectual; era a responsabilidade de quem cuida de medicamentos, prepara medicamentos e os entrega depois a seres confiantes, inteiramente impossibilitados de aí discernir entre o bom e o mau, o nocivo e o benéfico.

Fui assim contra o mundo encantado das fraudes e falsificações, em relação às drogas e aos remédios. Também confesso – contritamente, se aqui exigirem um advérbio – que também fui e sou (em parte) contra fraudes e falsificações no terreno social e moral. Outra preocupação, na aludida farmácia de saudosa memória, era ser constrangido a acudir um certo número de doentes, desses que não têm médico ou têm e não o querem. Não atender a uns, pensava eu, seria desumano; e não atender a outros seria antifilosófico, seria negar-lhes o direito ao livre-arbítrio. Em ambos os casos, a despeito das emocionantes razões físicas e metafísicas então invocadas, tratava-se de clínica irregular. A lei é taxativa. Porém não existe nenhum farmacêutico no Brasil que de bom ou mau grado não tenha gasto as solas dos sapatos pisando nessa lei. As sabidas e pranteadas deficiências de nosso país pobre e populoso criam tais "imperativos sociológicos", por assim dizer, contra os quais não prevalecem os preceitos jurídicos. Entretanto foi essa transgressão compulsória e assídua de um texto de lei, foi essa fraude contra a medicina e contra os médicos, meus amigos e meus irmãos em Hipócrates e em Galeno, um dos motivos que me levaram a abandonar espontaneamente a farmácia tradicional. 

O farmacêutico faz um excelente curso das mais variadas químicas e de tantas outras ciências que interessam à prática médica. Entretanto é o único produto intelectual que sai da máquina das faculdades sem se transformar em doutor. Sai recheado de sabedorias abundantes, mas não sai como um tratado e sim como um almanaque. Não tem título, não é coisa alguma, perde-se com facilidade por aí. Não é costume no Brasil chamar farmacêutico de doutor, e com muito bons motivos. Nunca se sabe quando o homem saiu mesmo de uma escola superior ou quando saiu dum volante de caminhão, de uma padaria, de uma loja de armarinhos ou de um chalé de bicho. Há mais "farmacêuticos" inscritos no Conselho Nacional de Farmácia do que a soma de todos os outros profissionais brasileiros, vivos e mortos. Ninguém poderia surripiar esse título, tão digno como os que mais o sejam, sem violar o direito de uns, o que é forma de afrontar o direito de todos.

Quando, pois, me chamam de doutor, a coisa também não agrada. Na melhor das hipóteses, há uma confusão. E via de regra eu me apressava em esclarecer, formulando tal esclarecimento em tom e termos urbanos, sempre que possível. Já foi dito que o homem honesto não aceita nem dinheiro nem louvores que não lhe sejam devidos. E ninguém me deve considerar na base das exceções. Aceitando o título, pode parecer que o farmacêutico não se importa de passar pelo que não é. Quer dizer: não se importa de passar por médico, por advogado, por engenheiro, por dentista, por veterinário, por agrônomo ou por outra coisa que realmente não seja. A mim me importava bastante. Isso é muito arriscado. Manda a boa prudência que cada um se limite a gozar dos próprios defeitos e não viva a cobiçar os alheios.

Quem escolhe a farmácia escolheu a "porta estreita" entre as profissões liberais, aquela de menos glória, de mais abdicações, de mais obscuro e incompreendido exercício, embora imponha, como as melhores carreiras universitárias, tão aprofundados conhecimentos de humanidades e tão pesado currículo escolar. Tanto é o que se exige dela e tão incerto e tão mínimo o que se lhe dá.

Minha vocação não era e não é a do médico. Era a deste setor da medicina onde os problemas da doença se tratam quase sempre longe do doente, como os problemas da terapêutica, da bioquímica, da bacteriologia, da toxicologia etc. Era a arte ou a ciência dos remédios, dos venenos e dos alimentos. Em suma, a vocação da farmácia, considerada em termos altos. E até os dias de hoje ainda é esta minha vocação, embora alguns a considerem uma vocação suicida. 

De tudo isto resultou me haver decidido limitar-me ao laboratório de análises clínicas, uma das atividades optativas da profissão farmacêutica. Todavia, como de tal coisa pouco sabe o público, simples foi imaginar que eu houvesse virado médico. Espontâneo e fatal, ter-se-ia armado o entimema: "É analista, logo é doutor". Já não vendendo nem preparando remédios, mas vendendo apenas serviço, puro trabalho técnico e científico, deixei de ser quem era. 

– Bom dia, doutor. 

– Boa tarde, doutor. 

– Como vai, doutor? 

– Pois é isso, doutor... 

São as pessoas bem-educadas com quem tenho a honra de me encontrar. Adquiri em pouco tempo uma incontestável pinta de doutor. E não consigo coragem para desapontar nem meios para agradecer a cada pessoa que a cada momento me confere o título gentil mas impróprio.

Lembro-me de Agripino Grieco a retrucar, visivelmente mal-humorado, quando em um jantar em Poços de Caldas alguém para ser amável o tratou de "doutor Agripino": 

– Não sei por que não se chama Jesus Cristo de doutor! 

Lembro-me também de Francisco Escobar, que foi uma das maiores culturas do país e que no entanto não cursara nenhuma escola, não possuía nenhum diploma. Não podiam chamá-lo de doutor, mas o chamavam de "coronel". Disso felizmente estou livre. 

jurandir-ferreira