1 fev 1979

Cidadão do mundo e homem de sua aldeia

 

Fonte: Da quieta substância dos dias. São Paulo, IMS, 1991, pp. 305-308.

Com a morte de Edmundo Cardillo fogem de sob os meus pés os caminhos que me levavam ao conhecimento de uma existência humana além de todas as barreiras; perco os caminhos da vida no plano fantástico de uma quarta dimensão, o qual, pela presença e pela palavra dele, se fazia acreditável, próximo e sensível. A sua cultura erudita que alcançou estonteadoras profundezas, mercê de uma copiosa, ininterrupta e infatigável devoração de livros; a sua inteligência magnífica para a qual os temas filosóficos ou científicos mais avançados eram fáceis, tornavam respeitáveis as suas convicções esotéricas e digna de ponderação a sua crença em um estado do ser que desafiava os pesos e medidas aceitos pelas técnicas da cultura convencional ou pelos dogmas das religiões ocidentais. O que ele sabia a respeito de quase tudo e o que ele sabia sobre as ciências chamadas de ocultistas era simplesmente fabuloso. E neste fabuloso decorreram os 76 anos de sua vida que completaria mais um aniversário, hoje, dia 1º de fevereiro de 1979.

O ocultismo vem a ser, em resumo, a pesquisa do inexplicável, do que é simplesmente imaginário e por isso mesmo já traz consigo uma realidade inicial, pois tudo quanto somos capazes de imaginar é capaz de existir. Neste sentido o raciocínio tem de valer-se de todos os recursos do conhecimento e da indagação objetiva, tem de trabalhar em silêncio, às vezes no terreno do absurdo, fora do espaço e do tempo. Isso, que eu pessoalmente declaro haver perdido em quem era desde a infância um solidário e assíduo companheiro intelectual, deverá ter perdido o grupo social onde ele viveu nos últimos decênios e onde era um milionário daqueles valores espirituais que constituem a maior aspiração do mundo civilizado. Ele acumulou uma riqueza que não tinha cofres; e quanto mais avultava, mais abria portas e mais pertencia ao patrimônio geral; mais se colocava como um elemento da natureza ao alcance de todos. Era um provimento cultural incessante, atuante e gratuito, uma força de presença, uma imanência, um quase totêmico padrão, como é em qualquer parte a inteligência do homem superior. Dele faço hoje, como sempre fiz, uma apologia irrestrita pela altitude das ideias com que ele nos fascinava; pelas fecundas, raras e nobres qualidades do seu espírito, esquecendo tudo aquilo que diante delas não passa de um fundo residual inseparável da condição humana. Quando falamos do ouro que brilha nas estrelas, não tem sentido o cascalho universal que é o chão do homem comum.

“Somos todos um cidadão do mundo e um homem de sua aldeia”, observou esse artista de largo talento que é Jean-Louis Barrault. Jamais poderíamos perder as referências com o círculo social onde vivemos e que, apesar de todas as contingências, é a representação humana mais próxima de nós, uma espécie de casca onde, como uma semente de Deus, o nosso ser tem de germinar e com o qual tem de associar-se pelas próprias raízes. Na qualidade de sábio, de artista, de músico e musicista, de escritor de tantas obras que podem figurar com honra nas letras de qualquer país, ele foi o cidadão do mundo. E como professor, como jornalista, como advogado e como político, principalmente como vereador, foi o homem de sua aldeia. Nela deixou as marcas de sua genialidade, da sua clarividência, do seu explosivo e efervescente destemor, coisas muitas vezes incômodas dentro das medidas aldeãs.

Desde o começo deste século, desde os tempos de Francisco Escobar, Pedro Sanches de Lemos e David Benedicto Ottoni, o velho, Poços de Caldas, onde ele definitivamente se fixou acerca de 1948, não contava com um intelectual da mesma significação, isto sem ignorar o quanto esta cidade mineira se tornou culturalmente expressiva. Não acredito que o tenham conhecido realmente e que estejam em condições de julgá-lo senão aqueles que leram os seus livros, pois em suas obras escritas é que encontramos a sua imagem mais completa, mais fiel e mais autêntica. Nos seus escritos é que ficou o que era essencial e importante da sua figura humana, o seu pensamento completo e indissimulado perante o mundo, perante a vida e perante o seu próprio eu. Ali ele era e é encontrado em toda a dignidade e magnitude de espírito. Contudo, como foi um pensador e um ensaísta, não um literato empenhado na fama e na recreação das massas, os seus livros não lhe trouxeram a popularidade que tanto merecia e que certamente agora começará a dar-lhe a póstuma consagração, como foi o caso de Schopenhauer na Alemanha.

Suas obras, desde a primeira, publicada em 1950, e que foi Aspectos novos de velhos temas, até esta última, que é A energia da forma e que ele não teve o gosto de ver a impressa, elevam-se a dez ao todo. Todas elas, examinando uma por uma, representam um tipo de leitura ensinadora, de conteúdo ao mesmo tempo austero, saboroso e encantador, esteja ou não de acordo com ele que o lê. Mesmo uma ou outra, de um feitio bastante polêmico e agressivo, como Os fantasmas do ocultismo, tem páginas pitorescas, de extraordinária vivacidade, onde o mais ignorante e o mais sábio se divertem e aprendem.

Ultimamente falávamos muito sobre Freud, sobre o papel que a psicanálise tem exercido sobre a formação da juventude e sobre a formação da sociedade humana em geral. Considerávamos eu e ele que o autor da Psicologia da vida erótica, embora não intencionalmente, havia aberto as comportas à permissividade sexual dos dias atuais e que tanto os aproxima dos malsinados dias de Sodoma e Gomorra, contra os quais São Paulo havia levantado nas Escrituras as suas terrificantes palavras. Edmundo Cardillo estava disposto a escrever uma obra contra o psiquiatra vienense. Na última vez em que me visitou, e visitava muito a miúdo, me disse ter acabado de receber o aviso de que “o seu Mestre viria buscá-lo”. Não sabia quando nem como, porém ele desejava que ainda tivesse tempo de redigir os argumentos que punha em ordem e que lançaria num volume antipsicanálise. Uma semana depois disso, às dez horas da noite do dia 2 de janeiro, quando ele, assentado à sua mesa de trabalho, se aplicava às suas atividades habituais, recolhendo a um arquivo alguns recortes de jornais, veio a surpreendente parada cardíaca. Sem dar o menor sinal de sua chegada, o Mestre havia vindo buscá-lo. Colhido em pleno exercício de suas fainas intelectuais, Edmundo Cardillo, como no verso de Martins Fontes, “rolou do azul como um condor”. Mas na primeira página de seu livro denominado Vale-flor, saído em 1972, vem esta “Confidência preliminar”: 

"Quando eu partir para o outro lado da vida, que acredito como ocultista ser real tanto quanto o lado em que estamos todos nós, talvez não me anime a permanecer por lá. Não que eu tenha tanto apego às coisas deste lado, pois na verdade o sinto no afeto aos familiares e aos amigos, às manhãs sorrindo flores e às noites chorando estrelas. Não. Hei de voltar, preciso voltar com as mesmas tendências, os mesmos desenganos, as mesmas alegrias, porque o maior encanto de minha atribulada existência é não conhecer o outro lado e esforçar-me por conhecê-lo; é debruçar-me ao postigo do Mistério e vê-lo esfumar-se por entre as brumas de minha insuficiência; é querer ouvir a música das esferas, e ter apenas um abafado eco das harmonias inatingíveis. Hei de voltar. Preciso voltar ao meu mundo ocultista."

jurandir-ferreira