Fonte: Da quieta substância dos dias. São Paulo, IMS, 1991, pp. 197-198.

Ouça a crônica de Jurandir Ferreira na voz do escritor Tadeu Rodrigues.

Foi naqueles dias fofos, corados, saborosos e macios como pães assados em casa, aos raios infravermelhos da aurora da vida. Foi ainda na remota civilização do trem de ferro, civilização que se recolhe sob colchas de poeira para os sonos arqueológicos. Estava eu nos meus quatro anos de idade e inaugurava minha primeira aventura turística sobre o perfil destes finos horizontes, cujas altas portas de cristal cor-de-alumínio os fazedores de progresso arrombam e estilhaçam com bulldozers, estacas Franki e vigas de concreto. Era uma interminável e movimentada viagem de Poços de Caldas para a Estação de Cascata, pelos trilhos da nossa veneranda Mogiana que, sozinha então no seu ofício, subia e descia a serra, trazendo-nos o comércio e as últimas notícias do mundo, bem como transportando para além o prestígio de nossos ares, ainda respiráveis, e a fama de nossas águas, ainda curadeiras.

Bufava, ardia e fumegava o trem como uma pesada e distinta senhora com rodas e fornalha. E ia cortando a paisagem em tal desapoderado esforço que a sua respiração esguichava para a terra os vapores alvos e ferventes, assim como baforava ao vento seus vesúvios de hulha, enquanto pelos vagões repletos de passageiros e de cargas tudo sacolejava e fremia. Era para mim uma gloriosa façanha em que eu me integrava com cada miligrama de todo meu ser, absolutamente encantado e decidido a não perder nenhum detalhe do abundante e novo prodígio. Árvores, postes, fios elétricos, pastos, casinholas, gentes, pássaros e bois, matos e barrancos rolavam e se desfaziam lá fora como simples resíduos daquela máquina em que estávamos voando através de países jamais imaginados.

Nesta altura da vida os valores do mundo psicológico e do mundo físico ainda se encontram de cabeça para baixo, em posição fetal, e se representam por imagens de sonho. Tão longe agora andava eu no tempo e no espaço que de repente meus olhos encontraram a maior das maravilhas. Uma cidade tal qual me mostravam as histórias para meninos nas páginas de O Tico-Tico, um semanário bem ilustrado, de histórias para crianças, então em voga. Era preciso viajar para ver uma cidade murada como aquela. E, mais que empolgado pela visão, gritei, apontando da janelinha do trem o meu dedo descobridor: “Uma cidade!”. Porém logo minha tia Afonsina converteu o fantástico descobrimento em termos de realidade: “Não, filho. Aquilo é o cemitério!”. Então não descobri mais nada e a viagem aventurosa findou naquele instante para a primeira lição sobre o que era um lugar entre muros para onde vão os defuntos.

Assim tem sido a minha velha poesia do cotidiano, uma confusão de cemitérios com cidades e de cidades com cemitérios. Uma desolada e longa sucessão de enganos, uma triste poesia de menino que não aprendeu a ver as coisas. E, com tudo isso, ainda raramente usa óculos.

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