Fonte: Da quieta substância dos dias. São Paulo, IMS, 1991, pp. 359-361.

Um desses vocábulos que dormiam o seu sono tipográfico no laminado e coletivo dormitório dos dicionários e apenas de longe em longe se levantavam para efêmeras transas com salomões ou com mandarins das letras, os filólogos, os biologistas ou farofólogos das mais refinadas farofas universitárias, esse vocábulo, que se chama ecologia, já não goza mais aquele clássico e lexicológico recato, já não pode mais dormir. Tornou-se um dos campeões do famoso Clube de Roma e o futebol desse clube está sendo jogado dia e noite pelo mundo afora. Para ecologia acabaram-se os encontros eruditos, aquelas exclusividades de convivência, aqueles repousos de sanatório, aquelas limitações de movimento e de comunicação. Ecologia em pouco tempo se vestiu com um variado guarda-roupa de letras, passou a frequentar revistas, jornais e livros, subiu (ou desceu) no rádio e na TV. Estava solta, ganhou a rua, as torrentes de povo, a voz geral. Massificou-se É hoje uma ideia pedestre, bem relacionada e conhecida em qualquer bar, em qualquer redação ou esquina. E não sendo um neologismo está longe de ser velha. Talvez apenas ande na altura do enequim, pois segundo afirmam foi inventada por volta de 1864 pelo alemão Ernesto Haeckel, o que lhe dá pouco mais de um século. Há palavras que aí estão de serviço desde os tempos de Cabral e nem mesmo se pode dizer que chegaram à menopausa.

Ecologia não tinha alcançado o charme e sua cotação linguística de hoje, mas os fatos, fenômenos, artes e ciências que ela designa e opera há muito já se patenteavam no estudo, na crítica, na argumentação e na prática de algumas inteligências e de algumas iniciativas mais vanguardeiras. Há bem uns quarenta anos que falamos e escrevemos sobre os problemas ambientais desta cidade, principalmente sua estrutura paisagística e bioclimática, envolvendo a preservação de suas matas e montanhas, suas nascentes e cursos d'água, sua natureza tão bela, tão rica e tão propícia ao harmonioso desenvolvimento de uma sociedade humana ideal. Porém nunca nos aventuramos a dizer que tais coisas eram ecológicas e que, muito vizinhas da sociologia e do urbanismo, interessavam de perto ao bem-estar dos cidadãos. Em lições de um curso ministrado pelo professor Donald Pierson na Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo e em uma coletânea de artigos e ensaios magistrais, coligidos e publicados por ele em 1948, sob o título de Ecologia humana, vimos assentada e brilhantemente exposta a relevância prática desses assuntos onde sem cerimônia também nos metíamos, porque afinal eram de nossa conta. Eram de nossa conta os problemas coletivos do lugar onde nascemos, residimos e trabalhamos.

Entretanto não éramos Donald Pierson, não éramos prefeito, não éramos um vereador, não éramos um forasteiro, não tínhamos em suma qualquer dessas decisivas qualificações. Tínhamos o silêncio, esse maravilhoso ouvinte, com seus infinitos ouvidos que guardavam e nos restituíam intactas todas as nossas palavras, na mais impecável devolução. Silêncio incorruptível e fiel à sua natureza, que, de nada precisando, nada tomava para si nem passava para adiante. Deixava acumular-se nos jornais a nossa convulsiva ecologia sem dizer água vai. O silêncio das pessoas é a forma de hostilizar com inocência angélica e eficácia infernal sem parecer nem uma coisa nem outra. Com que é que o silêncio se parece? Então aqueles nossos escritos, que se notasse, não mexeram nem mesmo com um farelo de caspa na cabeça dos grandes e dos pequenos deste reino. Isso para registrar o caso em caixa-alta, pois de fato conseguiram muitas vezes irritar a mais este e mais aquele, alargando a sombra em nossas Termópilas pessoais.

Hoje, mais velhos e filosofantes do que qualquer um dos heróis gregos, não falaremos nem escreveremos sobre árvores, águas e montanhas. Com estas sagradas e admiráveis coisas durante muitos e muitos anos perdemos bem perdido o nosso latim. Agora para tais efeitos aí estão os romanos do Clube de Roma botando ecologia sobre os horizontes do mundo, bradando pelos limites do crescimento e contra o homem agressor. A eles cedemos o lugar. Vamos deixar-vos na vossa paz. E, como diz o padre, que o Senhor vos acompanhe. À sombra dos bois e dos cafezais da junqueirada histórica, éramos os legítimos filhos da terra madre. Apaixonados autóctones, tínhamos para ela um coração passeiro e palpitante. Acabaram destituindo-nos. Hoje a cidade pertence às multinacionais, à Mitsui, à Celanese, à Alcominas, aos banqueiros, ao urânio, ao alumínio. É o futuro, onde os nossos meninos comerão "yellow cakes" assados em fornos reatores e terão lições de ecologia nuclear.

jurandir-ferreira