Fonte: Da quieta substância dos dias. São Paulo, IMS, 1991, pp. 55-58.
Da primeira viagem que fiz para fora de Poços de Caldas e das impressões que me ficaram dela não conto em pormenor porque talvez interessem apenas a mim mesmo. Entretanto, essa viagem, que me pareceu longa, não foi além da Estação de Cascata, uns 15 quilômetros serra abaixo, quando eu era ainda um menino muito menininho.
A viagem a Cascata prendia-se a interesses do meu avô, que lá ia à casa da família Prezia comprar tábuas para sua oficina. Os Prezia tinham uma serraria que cortava boa madeira, exatamente aquela que meu avô preferia. Recordo-me bem do galpão da serraria, da água que tocava a serra, das toras deitadas na serragem, das tábuas postas de pé para secar e dos pessegueiros em flor, que rodeavam a casa. Porém me recordo principalmente daquela família que nos recebeu com tanta gentileza e tantos obséquios e na qual mais tarde eu teria tantos e tão bons amigos.
Luiz Prezia, o chefe da grei, era um homem de modos cavalheiros que o recomendavam a misteres superiores ao que ele exercia. Dona Julieta, a senhora Prezia, na ocasião de nossa visita lidava na cozinha, preparando não sei que apetitosas quitandas, e havia meninos e meninas a ajudá-la ou simplesmente a entrar e a sair. No meio dessas crianças a figura de um menino me impressionou para sempre. Talvez fosse o menor de todos. Acabava de chegar da escola. Sei lá de que escola distante poderia ele chegar, num sítio tão ermo, tão despovoado, como era a estaçãozinha ferroviária. Na sua fronte ainda se percebia o vinco do chapéu que ele tirara naquela hora. Era magrinho, os cabelos curtos e negros, e também negros os sapatos, as meias e escuro, talvez cinza, o terno de roupa. Não me lembro de lhe ter ouvido uma palavra. Era um menino estranho. E nada mau. Seu mutismo e suas roupas davam a impressão de que ele não era uma realidade, mas um menino desenhado, um menino feito a crayon sobre aqueles ares limpos e azulados de Cascata. Mais tarde, quando eu aprendia a ler, a figura do “estudante alsaciano” estampada no meu livro de leituras me trazia as lembranças dele.
Só muitos anos depois tornei a encontrá-lo. Já era então um moço feito e tal qual ainda é hoje. Magro, espigado como uma silhueta de Goya ou Modigliani, um perfil parecidíssimo com o de Alighieri, o todo de um Quixote moderno, bem escanhoado e vestido sem desleixo e sem extravagâncias. Nessa época trabalhava ele como caixa na antiga Loja Moreira Salles, onde o Serpa e o Portela, os dois gerentes, davam-se ao luxo de conversar em inglês diante dos empregados jejunos de tal engrimanço. Editado e redigido por funcionários da casa bancária e por alguns outros jovens, publicava-se nesse tempo, que foi o do reaparelhamento e reurbanização de Poços de Caldas, o mais desabrido e mais corajoso jornal já aparecido neste lugar e que se chamava O Bichão. Tínhamos a petulância de levar para O Bichão todo nosso humor ou toda nossa canjica literária fabricada em nossos monjolos intelectuais. O moço da caixa colaborava alegremente em tudo, assistia a tudo, ajudava de todas as maneiras, com uma enorme dedicação e paciência, nas mais obscuras tarefas. Porém escrever não escrevia nunca. Não se julgava capaz de aparecer como os demais.
Quando deixou o seu lugar atrás da máquina registradora, fui encontrá-lo à rua Boa Vista, em São Paulo, no escritório de Presgrave & Melo, industriais e negociantes de madeiras. Ele continuava magro, pobre, ganhando pouco. Mas inalteravelmente bom. Com essa bondade de gestos, de atos e de palavras, com essa bondade integral com que Deus compõe a alma dos seus escolhidos. Falávamos sempre de literatura. Ele, na sua humildade e mansidão, informava-se de minhas opiniões, de minhas leituras, do que quer que eu estivesse fazendo ou planejando. Sua conversa era a de quem vê os caminhos literários como estrada de São Tiago, aberta nos fundos do infinito, onde só em sonhos lhe seria dado pisar. Escondia-se totalmente na sua condição de peça pequena da máquina comercial e parecia estar integrado para sempre no submundo dos funcionários contábeis sem nenhuma importância. O seu interesse pelas letras dava ares de ser apenas mais um dos modos pelos quais ele sabia ser bom. Cheguei a pensar muitas vezes que era simples cortesia dele e me recordava dos versos do poeta Belloc citados por Chesterton em seu livro sobre São Francisco de Assis:
Of Courtesy, it is much less
Than courage of heart or holiness,
Yet in my walks it seems to me
That the grace of God is in courtesy.
Depois de Presgrave & Melo o destino conduziu a ele e a mim por diferentes rumos através da vasta humanidade. Encontrávamo-nos de longe em longe. Por último ele veio morar e trabalhar em Águas da Prata. Lá eu o vi com intenções intelectuais menos abstratas. Pouco a pouco foi sortindo de bons autores as suas estantes. Mas apesar das suas excelentes leituras a conversa e a maneira dele ainda continuavam as menos livrescas, as menos pretensiosas que se possa querer. Ainda vivia nele, e vive, o mesmo rapaz modesto, brando e afável que fazia o troco para os fregueses da Loja Moreira Salles. Este, dizia eu para meu anjo da guarda, é um teu irmão áptero. Nem ao menos, tendo lido tanto, cai em vanglória citando suas leituras como o novo-rico fala de suas riquezas. E, além de tudo, resiste à tentação mais séria que é a vaidade de escrever, quando já aprendeu a ler de sobra. Considerei-o completamente inútil para o tráfego das ideias, posto que ele era um peixe de Cristo que teimava em não desovar na mesma água onde alguns mortais lavam suas cabeças empiolhadas de ignorância e de pecado. Isto é, entendi que ele jamais lançaria coisa alguma de si mesmo nas corredeiras da publicidade.
Mas um dia tenho uma enorme surpresa. Aparece um artigo assinado pelo Ademaro Prezia. Depois outros seguem-se de espaço a espaço, através de anos, e são todos de bom teor. Rápidos, breves, cheios de bom senso, de coisas alegres e apropositadas. O que ele faz é quase que a reabilitação de um gênero de articulistas, ao estilo de João Ribeiro ou Medeiros e Albuquerque, polígrafos que sabiam dar leveza e originalidade ao que em outros seria pesado chumbo acaciano. O aparecimento de Ademaro Prezia nestas circunstâncias foi brilhante. Acredito que os leitores, habituados à sua frequência, já o procurem e o leiam como se procura e se lê a coluna assinada por alguns nomes famosos. Acredito ainda que um jornal, procurando e pagando bem, não encontraria facilmente quem lhe escrevesse artigos iguais aos de Ademaro Prezia. Vamos, porém, que isso não tenha importância, uma vez que o trabalho intelectual é o único trabalho que se confunde com a vadiagem ou com um pife-pafe de gente letrada. O importante é o que ficou dito até aqui sobre o homem Ademaro Prezia. Este é que eu queria apresentar-lhes, pois creio que poucos o conhecem. E não o apresento sem um motivo superior que não é o de dar a ele os meus inúteis louvores, mas proporcionar aos homens velhos ou jovens um exemplo de vitória e de ascensão pela candura e pela perseverança, completamente sozinhas e desajudadas, sem as duas ferramentas com que a sociedade habitualmente constrói os seus doutores: o dinheiro e a universidade.