Fonte: Benditas sejam as moças: as crônicas de Antônio Maria, Civilização Brasileira, 2002. pp.67-69. Publicada, originalmente, no jornal Última Hora, de 20/04/1961.
De manhã, quando ia encostando o carro, as duas mocinhas pediram carona até seu colégio, em Ipanema. A rua estava cheia de água e não havia ônibus, lotação, táxi, nada.
– Vai pela praia, que é mais bonito – diz a de cabelos claros.
Obedeço. A outra, a moreninha, pergunta:
– O senhor chega sempre a essa hora?
– De onde você pensa que eu estou vindo?
– Sei lá. Dessas boates por aí.
– Pois olhe, estou vindo de uma igreja.
– Igreeeeeeeeeeeeeja? – aparteia a de cabelos claros. E continuou: – Meu pai disse que o senhor era comunista.
Tentei explicar que um homem é muitas coisas e nunca deve ser só comunista, só católico ou só burguês. Mas a explicação era longa e elas não estavam mais prestando atenção. Em frente ao Rian, a moreninha botou a cabeça fora do carro e falou que o namorado dela morava por ali.
– Namoraaaaaaaaaaado? – disse a de cabelos claros, no mesmo tom em que dissera "igreja". E continuou: – Sabe que idade tem o namorado dessa garota?
A moreninha, com as duas mãos, tentou tapar-lhe a boca.
Mas não foi possível, a de cabelos claros livrou-se e pegou embalagem:
– Vinte e sete anos. E é desquitado. E tem mais uma: não gosta dela, nem um pouco. – E virando-se para a amiga: – Verdade ou mentira?
– Gosta, sim. Ontem mesmo telefonou, falou que ia falar com o meu pai para, quando eu saísse do colégio, casar com ele e tudo.
– Essa garota é boba – começou a de cabelos claros, virando-se para mim. E depois: – Esse careta que ela inventou que gosta dele (sim, você inventou) vive com uma dona aí e já disse mesmo a ela que não pode largar.
– Mas não pode largar por gratidão, porque ela foi muito boazinha com ele, quando ele estava doente.
A moreninha estava dando muito "serviço". Numa simples carona de Copacabana a Ipanema, eu já sabia de quase toda a sua vida. Ao menos do principal. Então, para descansar a moreninha, perguntei à de cabelos claros:
– E seu namorado, quem é?
Foi muito engraçado. A menina tomou um susto e ficou com aquela cara de quem desce um degrau que não existe. Antes que a outra falasse, avançou-lhe no pescoço e tapou-lhe a boca, com as duas mãos. Embolaram as duas, no automóvel. O mais que eu pude fazer foi travar a porta, para que não caíssem na rua. Não estavam brigando, mas estavam emboladas. A moreninha, mesmo amordaçada, queria falar. A outra gritava-lhe, com a voz desesperada:
– Num vai falar, garota! Num vai dizer nada!
Avistei o colégio. Parei o carro e consegui separá-las. A de cabelos claros estava zangada mesmo; a moreninha, ofegando, com o rosto e o pescoço marcados pelas mãos da outra, dizia, ajeitando a blusa e os cabelos:
– Tá vendo! Tá vendo como é bom mexer com os outros!
Desceram a vinte metros do colégio. Dezenas de mocinhas, iguais a elas, iam chegando, aos pares. Quando desceram, disse a moreninha, despedindo-se e agradecendo a carona:
– O senhor desculpe, mas nós somos malucas.
Malucas, é possível que não (pensei). Um pouco velhas, talvez, para o uniforme que usavam.