Fonte: Seja feliz e faça os outros felizes: as crônicas de humor de Antônio Maria, Civilização Brasileira, 2005, pp. 57-59.
O casal vivera um ano na mais completa felicidade. Feliz em todas as peças do apartamento. Feliz, em todos os móveis da casa.
Jonathas é aquele marido ciumento, tão ciumento que quando Alice (sua mulher, no civil e no religioso), sentava-se em seu colo, sentia-se outro homem e, em se sentindo outro, tinha uma crise de ciúmes, ia ao banheiro e tentava o suicídio. Mas, de um ano para cá, vivia em tanta paz, que até deixara Alice tomar aulas de natação com um professor que, nos dias de chuva, vinha em casa:
– Ah, a paz do lar! – dizia Jonathas, no escritório, estimulando os sócios e empregados ao casamento.
Com a nova vida, Alice tinha (afinal!) sossego. Podia cruzar as pernas, mesmo que José Aparecido estivesse presente. Podia usar o vestido de jérsei e a cruz sobre as terríveis verdades do seu corpo. Podia ler José Carlos Oliveira e até suspirar, entre dois períodos mais fortes. Felicidade total!
Mas, naquela tarde, Jonathas chegou de cara amarrada. Uma revista Manchete debaixo do braço, o andar marcial, passou por Alice sem uma palavra... Ela ainda lhe disse a saudação do costume:
– Chegou, Vida?
... Você respondeu? Assim foi Jonathas. O olhar em riste, a revista debaixo do braço, passo de ganso, trancou-se no banheiro. "Fogo" – resmungou Alice. Saiu atrás, bateu na porta e fez a pergunta lógica:
– Está sentindo alguma coisa, Vida?
– Tudo – respondeu Vida.
Alice, coitada, sem atinar com o que estava acontecendo (e ainda poderia acontecer), telefonou para sua mãe de santo e pediu que acendesse uma vela aos pés de Oxum. Ligou para a cartomante, que disse não poder fazer nada, sem ela ir lá. Não dava. Foi ao horóscopo do prof. Prahdi, e os astros (ela era Touro) a ameaçavam pelos sete lados: "União em perigo, violência, possibilidade de derramamento de sangue. Hematomas e escoriações generalizadas. Interferência de um homem castanho em seu destino."
Pobre Alice! Voltou à porta do banheiro, bateu com as duas mãos e com a cabeça, também, para dramatizar... até que Jonathas abriu e veio lá de dentro, transfigurado. Atirou a Manchete aberta sobre a cama, na página em que Vinicius de Moraes, impiedosamente, concedia a primeira entrevista em série.
– Ele voltou! Ele voltou! Essa não!... – gritava Jonathas.
E levantava os olhos para um céu, que já não era seu:
“Senhor Deus dos desgraçados, dizei-me Vós, Senhor Deus, se é mentira ou se é pecado, tanto horror perante os céus!”
E acrescentava:
– E eu, que passei um ano tão feliz!
Alice podia ter-lhe dito algumas palavras de consolo. Querendo, podia. Mas preferiu ser sincera. Apertou-lhe a mão de homem para homem e sussurrou:
– Tem razão, Vida. Tem razão.
Com a mesma verdade com que apertou, largou a mão de Jonathas. Foi ao espelho, deu um jeito qualquer no cabelo, pegou a chave do Fissore (novinho) e partiu para a incerteza. No rádio, Nara mandava: "Quem de dentro de si não sai, vai morrer sem amar ninguém...".