Confesso que ao pegar o Diário Carioca vou diretamente à procura do “Dia Astrológico” fornecido por um senhor Mirakoff, redator interplanetário do fogoso matutino.
Em minha tão distante mocidade gastei, confesso, em mesas de pôquer ou cook-can (naquele honrado tempo não se falava nem de “buraco” nem de “pif-paf”), longas noites que se houvessem sido dedicadas ao estudo dos bons autores me teriam provido, nesta amarga e fria velhice, de um cabedal de conhecimentos que não possuo e que, para falar com todo o descaramento, não me fazem falta alguma ou fazem menos que o dinheiro perdido através das referidas noites para falsos e vorazes amigos que sempre tinham um “four” de sete quando eu me pavoneava em apostas levianas com um “flush” de copas todo vermelho e bonito, cheio de figuras e corações palpitantes. Nós, os sentimentais, não devemos jogar pôquer, jogo de matemáticos, é esta a moral. Criei, então, o hábito, muito comum entre tais viciados, de “filar” ou “chorar” a carta perdida; e ao ver a seção “Dia Astrológico” faço o mesmo. Ponho a mão sobre o pequeno trecho referente a pessoas nascidas entre 22 de dezembro e 20 de janeiro, que são minhas companheiras de infortúnio, e a vou retirando devagarinho. Costumo entregar-me a esse exercício logo após as minhas abluções matinais, à mesa do café; e, palavra por palavra, vou lendo até o fim a sentença dos astros para o dia que se inaugura.
“Sarcasmo e dores na garganta; a tarde será favorável para negócios de minas”. Estremeço. Ouvirei ou direi sarcasmos? Como evitar dores de garganta? Qual dos meus amigos terá algum negócio escuso referente a minas para que eu possa adquirir urgentemente algumas ações e especular com violência? Às vezes os astros dizem coisas assim: “Complicações com o outro sexo, malícia e tonteiras”; ou anunciam “Imaginação fantástica e negócios insolúveis, dores nos rins e nas pernas”.
Está visto que não acredito nessas coisas, e meus rins jamais doeram. O fato, porém, é que não posso deixar de sentir um doce calor no coração quando os astros confessam que o dia nascente me traz “espírito generoso e sucesso sociais”. Isso predispõe bem qualquer pessoa, e desde logo evito fazer notar às pessoas responsáveis dentro de minha organização doméstica o fato de que a manteiga está rançosa e o leite aguado. Afinal é difícil apurar a responsabilidade do ranço da manteiga, e talvez mesmo o dia astrológico esteja desfavorável à manteiga fresca; quanto ao leite, devemos ser generosos admitindo que, quando a Comissão Central do Leite ou algum de seus prepostos lhe deita um pouco de água, está, afinal de contas, obrando de maneira democrática, pois está possibilitando a um maior número de pessoas tomar leite, embora mais fraco. Este pensamento generoso me faz bem e fico à espera dos sucessos sociais.
O mesmo não acontece se o sr. Mirakoff prevê “irritabilidade, ânsia e gestos arrebatados”. Nesses casos é inútil lutar contra o sistema planetário; o melhor é jogar imediatamente a manteigueira na cabeça da empregada e desfechar por escrito ou de viva voz ataques terríveis ao governo Vargas que mantém essa sujíssima bandalheira do leite no Distrito Federal, em virtude da qual alguns espertalhões bem empistolados ganham fortunas, enquanto as criancinhas pobres definham subalimentadas, citando a opinião de um jornalista americano meu amigo, segundo a qual se certo dia alguém ousasse servir um leite tão infame na cidade de New York, o povo sairia para as ruas e toda a administração municipal seria amarrada em cadeiras elétricas e minuciosamente torrada.
Se o horóscopo anuncia “notícias alvissareiras e negócios promissores”, confesso que espero o carteiro com certa ânsia, e me posto algum tempo junto ao telefone; se nada obtenho, dou as caras pela rua 1° de Março, à espera de que o sr. Marcos de Sousa Dantas me encontre ali pela calçada do Banco do Brasil e, abrindo os braços, exclame: “Oh, Braga! Você vai me tirar de uma grande dificuldade. Imagine que estamos com excesso de caixa aqui no banco, e eu precisava me ver livre pelo menos de uns 150 mil contos. Você não conhece ninguém que tope um empréstimo? Olhe, eu faço a coisa barata, quatro por cento ao ano... dê um jeito nisso, ó Braga irmão!”
Também é impossível não ficar impressionado quando as “astralidades” (esta é uma palavra que parece exclusiva do sr. Mirakoff) predizem simplesmente: “Espírito brilhante. Favorabilidades. Cupido está favorável”.
Abro a máquina com ímpeto e imediatamente me ponho a escrever coisas estupendas; cada frase minha vai cintilando, faiscando, reverberando com singular talento. Feito o que, ponho a minha famosa gravata dourada, coloco uma pequena flor à lapela e saio para a rua cheio de “favorabilidades”, inteiramente à disposição das damas.
Devo confessar que nem as damas nem o sr. Sousa Dantas parecem dar muita atenção aos astros. Leiam Mirakoff! – é a mensagem que lhes envio.
Mas não leiam sempre. Há dias tristes, em que me sinto com “espírito versátil e medos infundados” ou “misantropia e desequilíbrio arterial pela tarde, e a noite será de nostalgia”.
***
E a verdade é que, embora exagerando um pouco nos dias a favor, o sr. Mirakoff passou anos a me dirigir razoavelmente a pobre vida. Triste bicho deste pequeno e úmido planeta, eu me sentia sob a influência dos signos misteriosos que a ciência dos caldeus lia nas curvas cerúleas do Infinito e, quando Saturno entrava em Virgo, ou Vênus atingia os Peixes, eu sentia coisas estranhas dentro de mim e me punha a empreender viagens ou fazer novas relações ou evitar negócios de imóveis, obediente, como um peru, às linhas do zodíaco.
Mas ah, professor Mirakoff. Tudo de repente começou a falhar, e me voltei para os astros, inquieto e surpreso como alguém que olhasse o maquinismo do relógio que de repente começou a endoidar. Os planetas não estavam mais funcionando, e cada um começou a errar como bêbado pelas faixas proibidas, como se o sr. Edgar Estrela, da Diretoria do Trânsito do Governo Celeste tivesse baixado uma nova portaria, ainda não compreendida. Em meio às piores “conjugações”, eu boiava feliz dentro de um sonho, e os milagres esvoaçavam à minha volta, como colibris entre papoulas lindas; e quando deviam chover do sol “favorabilidades” a flux, eu mergulhava nas trevas do mais torpe e vil desânimo.
Não leiam Mirakoff! Mirakoff não sabe nada, murmurei então. Mas um amigo que me conhece e espreita, segurou-me o braço e abanou a cabeça: “Não, Braga, não, Mirakoff está certo marcando o destino das pessoas que vivem na Terra: mas tu, ó imprudente, andas com um pé no Céu e outro no Inferno e ora tombas de outro, e não há planeta que te domine, pois entregaste tua alma a outra alma, e tu não és mais tu, nem mais sabes de ti. Lembra-te de Orestes”.
Pensei em Orestes, o matricida, irmão de Electra, rei de Argos e da Lacedemônia, mas ele falava de Orestes Barbosa dizendo à sua amada: “Tu pisavas nos astros distraída...”
E compreendi tudo. Adeus, professor Mirakoff.