Fonte: O jornal de Antônio Maria, Saga, 1968, pp. 71-72. Publicada no livro Vento vadio, Todavia, 2021, pp. 44-45.

Eram cinco irmãos, cinco pessoas muito unidas, numa família que vinha de avô muito bom e muito nobre. Acordavam de manhã cedinho, beijavam-se (os mais velhos ajudavam os menores a vestir-se), e sentavam a uma grande mesa de café. Comiam, fartamente, de bolos e de queijos especiais, além de aipins, batatas e inhames, entre goles volutuosos de um gordo, doce e quente café com leite. Depois chegava a professora de piano e, um a um, tomava a lição de todos. Na casa, subindo ao andar de cima (que parecia vazio, de tão grande), repetiam as notas do exercício: Dó-mi-sol-mi-ré-mi-ré-dó. Na rua, os primeiros pregões do cuscuzeiro, do vassoureiro e do homem da “lã de barriguda”. Lá pelas nove, os cinco irmãos tomavam banho, botavam-se a cheirar de lavanda inglesa e desciam para a lição de francês. A professora: uma mademoiselle de corpo grande e rosto feio. Os olhos e a boca sempre tristes e o nariz vermelho, de bolão. Seu vestido cheirava a roupa que se suava, se guardava, se vestia de novo e nunca era necessariamente lavada ou posta ao sol. E, se mademoiselle não tivesse muitos iguais, era sempre o mesmo ― preto de meias mangas, uma gola branca passada a ferro, um cinto cinzento com fivela coberta de veludo (preto também), a saia justa nos quadris, indo até os tornozelos. Os sapatos, baixos, de verniz, com uma fivela de adorno, no peito do pé. Começava a aula, com uma pergunta direita: Est-ce un livre? E o arguido respondia, fazendo o bico que lhe era recomendado para evitar a pronúncia norte-brasileira o mais possível e, naturalmente, facilitar a pronúncia francesa: Oui, c'est un livre. Depois, vinha a pergunta falsa. Mademoiselle apontava uma pilha de livros e perguntava: Est-ce que se sont des cahiers? E o arguido com ar vitorioso: Non, ce ne sont pas des cahiers. Ce sont des livres. E Mademoiselle, rescendendo o seu vestido negro, ordenava o exercício mexendo a xícara do café, que lhe era trazido, religiosamente, ao meio da lição, por uma criada de avental muito limpo: Écrivez la leçon numéro deux au pluriel ― c'est un homme, ce sont hommes etc

Dos cinco irmãos, um morreu e os outros quatro ficaram pobres. Foram viver cada qual um destino malfadado, envelhecendo e engordando, simplesmente. Escrevem-se nas datas e, antigamente, para avisar o nascimento dos filhos. Não se veem nem se mandam fotografias, que é para não serem comparados, como no tempo da lição de piano, da lição de francês, da casa, enfim, que hoje é um prédio banal de apartamentos, com farmácia, açougue e lavanderia, nas lojas térreas. Na rua, não há mais pregões e as manhãs dos domingos perderam aquele ar de imensa felicidade...

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