Fonte: Antônio Torres: uma antologia. Rio de Janeiro, Topbooks, 2002, pp.131-134

Chamo a atenção dos poderes competentes, devidamente representados pelas repartições encarregadas de combater endemias nocivas ao desenvolvimento da raça, para a secular endemia lírica que anemiza a nossa juventude. Enquanto as nossas profissões remuneradoras definham por falta de braços, jovens patrícios, atrasados, cretinizados pela absorção lenta de Casimiro de Abreu (intoxicação feita através de muitas gerações de poetas amorudos e trovadores imbecis); retardados no seu desenvolvimento d’homens; dessorados naqueles centros do psiquismo superior em que se forjam as complexas armas espirituais, mercê das quais se afirma a dignidade masculina, ou seja — a soberania do macho sobre a fêmea da sua espécie; jovens patrícios dão aos seus contemporâneos o deprimente espetáculo que é um grupo de pequenos animais dominados por uma espécie de cio choroso e amulherado, sem coragem de afirmar-se perante o objeto de seus desejos senão por meio de estrofes plangentes, de timbre obsoleto e acordes infantis, versos sem virilidade, gemidos de emasculados e ais poéticos que estariam ao alcance de qualquer eunuco do sultão, se aos eunucos dado fosse cometer o desaforo de rimar versos a raparigas. 

Está nos casos o Sr. Guilherme de Almeida, poeta paulista, que acaba de dar à estampa um volumezito de versos que tem o título melífluo e lambisgoia de — Nós. É a história maçante e frívola dos amores do poeta e uma rapariga qualquer. Literariamente são versinhos bem medidinhos e chochinhos, sem uma só ideia, sem nota emotiva, sem nenhum arranco para os píncaros do ideal, sem sinal desses ímpetos luminosos que arrastam uma alma para as esferas altas e grandes em que as estrofes de um poema esvoaçam como fagulhas que rasteiam de aurifulgências todo o espaço... 

Ora, uma vez que não se pode dizer nada novo acerca do amor, para que publicar livros tão anêmicos?  

Quando, velhos e tristes, na memória 
Rebuscarmos a triste e velha história 
Dos nossos pobres corações defuntos,
 
Que estes versos, nas horas de saudade, 
Prolonguem numa doce eternidade 
Os poucos meses que vivemos juntos. 

 Em que é que interessará à humanidade a história dos beijos, abraços e correlatas patifarias que o poeta e sua amada fizeram juntos? Dirão talvez que esse amor é um desses sentimentos cândidos que povoam de ilusões toda uma adolescência e projetam clarões até para além da idade madura. Mas isso mesmo não desperta interesse a nenhum espírito sério. Não digo novidade nenhuma, afirmando que tais sentimentos puros, liriais, são, na sua essência, a mesma vibração dinâmica que leva um jumento a correr um dia inteiro pelos prados atrás da sua fêmea, e transfigura um cavalo, eriçando-lhe a crina, tornando-lhe o pelo reluzente, dilatando-lhe as narinas, fazendo-o nitrir, pondo-o de olhos acesos como carbúnculos em brasa, vibratilizando-lhe todos os músculos, que adquirem maleabilidade de lâminas de aço, quando o seu lançarote o põe em contato com égua de boa raça. Ora, colocados em paralelo os amores do cavalo e os amores humanos, os do cavalo são muito mais belos do que os namoros de poetinhas que nem ao menos têm coragem para afirmar-se perante as suas dulcineias.  

Sonhamos. Quando um dia eu for velhinho, 
Hei de encontrar-te velha no caminho... 
E juntos, cambaleando, aos solavancos, 
 
Nós levaremos, pela tarde calma, 
Toda uma primavera dentro da alma, 
Todo um inverno de cabelos brancos... 

 Francamente, é ou não é infinitamente mais interessante o cavalo? O cavalo, quando lhe chega o tempo, ama, simplesmente, animalmente, belamente, como se deve amar quando se tem boa saúde e prazer de viver. Ama e não faz versos. Ninguém que se preze vai dizer à sua diva que algum dia hão de andar cambaleando e aos solavancos pelas estradas, como quem volta de alguma farra bem regada a zurrapa e alimentada a tremoços.  

Vais lendo. E, enquanto a tua mão folheia 
O livro, eu vejo que, de quando em quando, 
Estremecendo, sacudindo, arfando, 
Teu corpo todo num delírio anseia. 

 Mas, senhores, tudo isso é vulgar. Qualquer costureira esperta está sujeita a semelhantes acidentes. Toda a gente está mais ou menos farta de saber que uma rapariga, quando anda de amores com qualquer rapazelho (uma vez que em casa lhe faltem os pais com o corretivo moral do chicote), lê sempre alguns livritos que lhe empresta o seu namorado. No caso vertente, quero dizer, no caso da rapariga que anda enrabichada pelo poeta, se ela, durante a leitura, estremece, sacode-se, arfa e tem o corpo todo a delirar, como diz ele na sua algaravia de colegial cheio de sentimentalismo, já se sabe o que a rapariga estará a ler em êxtase: se não for Les Demi-vierges, do imbecilíssimo e engenheiríssimo Marcel Prévost, será com certeza aquela cena do Primo Basílio, em que Eça de Queiroz nos mostra o canalha do romance, durante as extravagâncias com a prima, na equívoca e supercivilizada posição de quem se levanta de estar de joelhos, ainda meio incendiado, alisando os bigodes e lambendo os beiços... 

Felizmente, aí pelo meio do volume, dá-nos o poeta a grata nova de que a rapariga se foi embora: 

Quis dar-te mais: tu nada mais quiseste, 
Pelo bem que te fiz padeço agora 
A saudade do mal que me fizeste. 

 À la bonne heure! A rapariga safou-se. Terá feito bem? Certo, fez bem a si própria, mas fez, sem o querer, grande mal ao poeta e às letras pátrias. Ficamos sabendo que a vida de ambos era assim uma espécie de vida de canários em viveiro: 

Era assim: era beijo sobre beijo, 
Abraço sobre abraço.... Um só desejo 
Nunca tiveste que não fosse o meu. 

 O mal do jovem rimador paulista foi supor ter descoberto a pólvora quando beijava e abraçava a sua bela Rosina. Considere o Sr. Guilherme de Almeida que os amores de toda a gente são perfeitamente iguais aos seus amores.... É sempre assim: beijo sobre beijo, abraço sobre abraço e... le reste en conséquence. A esse respeito não há mais novidade alguma. Tudo quanto se pode fazer em matéria de amor já está feito. E, se o Sr. Guilherme de Almeida for capaz de inventar acerca deste particular algum prazer novo, pode tirar patente de invenção e garanto-lhe que terá estátua ao lado dos maiores gênios da humanidade. Apenas com uma condição: não fazer versos molhando a pena em água de flores de laranjeira açucarada, como o malogrado cretino Casimiro de Abreu, cuja alma tenha Satanás sempre entre os cornos...

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