Ontem, no pardieiro intitulado Teatro República, perante numerosa assistência composta exclusivamente de patrícios seus, o festejadíssimo poeta português, Sr. João de Barros, descobriu mais uma vez o Brasil.
Dos portugueses que por cá têm vindo, desde o infausto ano de 1500 até hoje, o único que verdadeiramente não descobriu o Brasil foi Pedro Álvares Cabral.
Por duas espécies de motivos digo eu que Cabral não descobriu o Brasil: por motivos históricos e pela significação moderna da locução descobrir o Brasil.
Quanto aos motivos históricos, é sabido que Cabral foi no seu tempo um dos últimos a conhecer o Brasil. Antes dele cá haviam estado Diogo de Leppe, Solís, Yáñez Pinzón e outros que, infelizmente, não tiveram a iniciativa de tomar posse da nova terra para a coroa da França ou para a coroa da Espanha. Nessa não caiu Cabral, que, capitaneando um punhado de corsários, que iam entregar-se à lucrativa indústria da pirataria nas costas indianas, tanto que avistou terra, mais que de pressa desceu e aqui plantou o marco português. É este o seu único mérito; pelo que, se os portugueses devem venerar a memória de Cabral, que lhes deu no passado uma rica possessão, de cujos recursos ainda hoje exclusivamente vivem, os brasileiros não têm nenhuma razão para tanto. Nós brasileiros só devemos venerar a memória dos nossos heróis: Calabar, trucidado pelos portugueses em 1635; Filipe dos Santos, esquartejado em Vila Rica, por ordem dos portugueses, no ano de 1720; Tiradentes, enforcado e esquartejado no Rio de Janeiro, no ano de 1792, em virtude da sentença da alçada portuguesa; frei Caneca, o padre Miguelinho, o padre Roma e outros patriotas fuzilados pelos portugueses em Pernambuco e na Bahia, no ano de 1817; Cláudio Manuel da Costa, assassinado na prisão (Inconfidência Mineira) entre 1789 e 1790; os que morreram nas masmorras do Limoeiro e da Junqueira, assim como nos degredos da África, expiando o crime de terem amado a sua pátria. A memória destes é que devemos venerar, e mais a dos vencedores da Independência e da Regência: Gonçalves Ledo, Antônio Carlos, Martim Francisco, José Bonifácio, Evaristo da Veiga e, acima de todos, o grande padre Diogo Feijó, o Regente de Ferro, verdadeiro plasmador da unidade nacional, cuja memória deve ser agitada como uma bandeira de guerra. Veneremos no mesmo plano em que estiver Diogo Feijó o marechal Floriano Peixoto, cuja espada e cuja serena energia souberam manter a unidade nacional nos agitados primeiros tempos da República...
Voltemos, porém, ao nosso intento. Historicamente, Cabral não descobriu terra nenhuma por aqui; apenas apoderou-se de um território incluído entre os descobrimentos de Colombo (por ter sido este o descobridor de todo o continente americano) e positivamente, diretamente já descoberto por outros, como Solís, Pinzón, Leppe, etc.
Em virtude da significação moderna da locução descobrir o Brasil, também é evidente que Cabral não nos descobriu.
Cabral, com efeito, depois de tomar posse do Brasil e de ter ido à Índia (onde praticou a bravura de destruir com artilharia grossa algumas chalanas malabares, feitas de vime e de madeira fragílima), voltou a Portugal, onde, depois de receber alguns prêmios, viveu e morreu tão obscuramente que, só devido a esforços de um brasileiro (o Dr. Alberto de Carvalho), se descobriu o seu túmulo, no século XX. De sorte que o Brasil pouco aproveitou ao navegador. Não é isso, pois, que se chama descobrir o Brasil, como se vai ver.
Descobrir o Brasil é fazer como Malheiro Dias, que, depois de insultar-nos no seu livro A mulata e de ter fugido para Portugal, para cá voltou anos depois, estabeleceu-se com fábrica de unguentos e pomadas, de sociedade com uma polaca sua amiga, e toca a levar vida regalada!
Os irmãos Monjardino, médicos, aqui vieram em visita, diziam eles. Foram recebidos na Sociedade de Medicina; tiveram banquetes, discursos e retratos nos jornais. Apanhado esse vasto e excelente reclamo feito à custa da ingenuidade dos seus colegas brasileiros, que pensavam estar rendendo homenagens a simples visitantes ilustres, um dos Monjardinos voltou para Lisboa, mas o outro, mais prático e esperto, gostou tanto deste país que resolveu cá montar consultório, e fez muito bem, pois como já dizia o seu patrício Pero Vaz Caminha, “a terra he em tal maneyra graciosa que em se plantando nella se dará tudo”, inclusive a árvore das patacas...
Descobrir o Brasil é finalmente fazer como o Dr. João de Barros, que nos conta, a respeito da nossa terra, coisas de que nunca ouvimos falar. Ainda ontem nos dizia ele, com o seu sibilante sotaque alfacinha, que no Rio de Janeiro “a inteligência, o talento e o gênio tomam as mais fascinantes formas”. Ora aí está uma grande novidade para nós, porque a inteligência aqui é relativa, como em toda parte; o talento é raríssimo; quanto ao gênio, ainda está por aparecer, a não ser que o Sr. Barros nos tenha trazido aí um pouco da mercadoria nalgum “barrilote dovos mol's d'Aveiro”.
Não contente com isso, disse ainda o consagrado literato que no Rio de Janeiro “o mar tem o riso fresco das bocas novas das mulheres e a eterna alegria do riso álacre dos deuses pagãos”. Isto agora é asneira e grossa. Pode ser que em Lisboa esse palavreado sonoro ainda seja muito boa literatura, mas aqui no Rio, não. Mar que parece boca de mulher e riso dos deuses ao mesmo tempo, isto é mar andrógino, macho e fêmea simultaneamente, mar Ganimedes, cujos recônditos mistérios só o Dr. João do Rio nos poderá explicar...
Finalmente, mestre João de Barros encerrou a festança com dois berros à portuguesa: Pelo Brasil! Por Portugal! A mim quer-me parecer que esses senhores adeptos da recolonização do Brasil pelos portugueses (pelourinho, forca, fuzilamentos, esquartejamentos, proibição de abrir estradas, escolas, bibliotecas, etc.), esses senhores estão exagerando as coisas com essa gritaria Por Portugal! Nós não devemos gritar Por Portugal, porque amanhã pode um italiano exigir que gritemos Pela Itália! Um alemão pode querer que gritemos Pela Alemanha! E qualquer prostituta francesa do beco dos Carmelitas, com iguais direitos à nossa aproximação, poderá pedir-nos um Pour la Frrrance! e não haverá quem lho negue...
Quanto a nós, os que conhecemos a história dos mártires da nossa liberdade; que temos sempre presente a memória dos acoitados, dos roubados, dos degredados, dos empobrecidos, dos fuzilados, dos enforcados e dos esquartejados por ordem dos portugueses, nós é que nunca havemos de gritar Por Portugal! — nem que nos rachem ao meio!