Explicação de futuro

 

Fonte: Benditas sejam as moças: as crônicas de Antônio Maria, Civilização Brasileira, 2002, pp.105-106. Publicada, originalmente, no jornal Última Hora, de 1/11/1960.

(Os amantes temem o futuro. Temem, amanhã, estar fartos, detestarem-se; horrorizam-se à ideia de, um dia, serem melancolicamente amigos. Daí a explicação do futuro, em três pontos e três cenários.)

1 ― Luz e som: quando o vento mudar de direção e de umidade; quando anoitecer; quando ouvirmos, na rua, mais aflitos os sons de trânsito do anoitecer; quando entrar pela janela o cheiro dos jantares da vizinhança e, pela mesma janela, vierem as formigas de asa; quando o disco, após a canção, continuar rodando na vitrola. 

2 ― Na cozinha: quando o molho da carne do almoço restar frio e branco no prato de travessa. 

3 ― No quarto: quando cerrares os olhos, aflitamente, à minha nudez (ou eu à tua); quando te puseres de pé e eu analisar o teu seio; quando as minhas pernas te parecerem mais grossas; quando a ideia de um beijo nos causar um arrepio de saciedade ― o asco da saciedade; quando nos analisarmos; quando eu passar a ouvir o som dos teus passos e, sem querer, contá-los, como se fossem golpes; quando, pelos sons de água, eu acompanhar tua permanência no banheiro; quando sentires o cheiro do meu cigarro forte e eu odiar a tua anágua; quando os teus cotovelos me parecerem escuros e detestares a minha tosse de fumante; quando estivermos absolutamente certos de que a única liberdade é a da solidão absoluta...

Será, então, o futuro, de que tanto falavas, que tanto receavas. 

Não sentirás perda alguma. Eu também não.

antonio-maria