É curioso observar como aqui se procede em relação aos problemas máximos das relações sociais. Questões que interessam os altos destinos, não só da Nação, mas da própria Humanidade, são resolvidos escuramente nos gabinetes de obsoletos “consultores” cuja mentalidade, se não é guiada pelo interesse, as mais das vezes o é pelo esnobismo de parecerem modernos.
É premido por semelhante bobagem, a qual, com a sua falta de real personalidade, domina-lhes a inteligência; é premido por isso, dizia, que eles se aventuram a afirmar os maiores absurdos, os maiores contrassensos, para não dizer outra coisa.
Ainda agora o Senhor Rodrigo Otávio, que ocupa o lugar rendoso de consultor geral da república, cuja notoriedade vem de ter sido amigo de Raul Pompéia e contar, com detalhes escatológicos, como Pedro I proclamou a Independência; pois ainda agora esse senhor Rodrigo Otávio dá um parecer muito curioso sobre o direito que têm as mulheres de exercer cargos públicos.
Não se tratava bem de cargos públicos; e eu não faço a injustiça de dizer que sua senhoria não sabe que “escrevente de cartório” não é cargo, não é funcionário público, é simplesmente um serventuário; é alguma coisa como um servente de secretaria que sabe escrever.
Deixemos, porém, isto e continuemos a analisar o seu parecer. Há dois tópicos interessantes. Um é aquele em que se refere ao Código Civil, que, no Art. 247, prescreve que “considerar-se-á sempre autorizada pelo marido a mulher que ocupar cargo público”.
Que jurista é esse senhor Rodrigo Otávio! Pois ele não sabe que desde muito as nossas leis permitiram o exercício de certos empregos públicos a mulheres, nos Telégrafos, nos Correios e no magistério?
Isto era autorizado por lei ou regulamento com força de lei; mas meter meninas no Ministério do Exterior, no da Viação, etc., ainda não houve uma lei que tal autorizasse. O senhor Rodrigo Otávio [deve saber que a mulher é] mais ou menos equivalente ao louco, ao menor, ao interdito. Está sempre debaixo de tutela e proteção de quem ela carece irremediavelmente. Quando se promulgou a Constituição de 24 de fevereiro, foi com esse espírito que se disse que os cargos públicos eram accessíveis a todos os brasileiros: mas “brasileiros” aí são homens, conforme o espírito da época.
Tenho documentos de que sempre assim pensou o governo da República, durante cerca de vinte e tantos anos.
Não quero esconder todo o meu leite. Era ministro da Fazenda o inesquecível Joaquim Murtinho e uma moça requereu inscrever-se em concurso, para um lugar de Fazenda. Ele negou, baseado num parecer da Diretoria do Contencioso.
Como este caso, tenho em meu poder informações de mais outros relatórios. Não me move nenhum ódio às mulheres, mesmo porque não tenho fome de carne branca; mas o que quero é que essa coisa de emancipação da mulher se faça claramente, após um debate livre, e não clandestinamente, por meio de pareceres de consultores e auditores, acompanhados com os berreiros de Dona Berta e os escândalos de Dona Daltro. É preciso que isso se faça claramente, às escâncaras. Cada um, então, que dê sua opinião.
Um outro tópico, dos dois a que me referi mais acima, é aquele em que o doutor Otávio cita um alvará do regente Dom João, “fazendo mercê” de uma escrivania a uma senhora. É engraçado que o doutor Rodrigo não veja a diferença do regímen que existia naquele tempo e do que nos oprime hoje.
Um cargo público era propriedade do rei. Ele os podia dar e vender.
Hoje, porém, não é assim. Está na Constituição que eles são accessíveis a todos os brasileiros, mediante as condições que a lei estatuir.
Dom João VI podia dar um lugar de juiz a um macaco; mas o doutor Epitácio Pessoa, não. Podia ser feminista, sem congresso. Aí é que está o “busílis”.