Fonte: O saltimbanco azul, L&PM editores, 1979, pp. 53-55. Publicada, originalmente, no Caderno B, do Jornal do Brasil, de 26/05/1978.

Sou um censor. Um colega meu publicou recentemente um livro a respeito de nossa atividade, no qual afirma que é preciso ter vocação para exercê-la. Concordo. Descobri minha vocação quando tinha seis anos de idade. Meu pai era modesto funcionário do IPASE, que já não existe, e mamãe uma santa senhora. Pelo menos era assim que eu pensava na minha inocência de filho único. Porém me angustiava um detalhe estranho observado no interior aparentemente sadio da nossa pequena família. Imaginem que a gente vivia numa casa de três quartos, em Parada de Lucas. O meu quarto era igual ao de qualquer criança pobre, mas bem-amada: dormia numa cama-berço e vivia rodeado de brinquedos baratos, mas numerosos. Num segundo cômodo dormia a nossa velha cozinheira. E no terceiro.... No terceiro, papai e mamãe dormiam. Aquilo me parecia bastante suspeito. Se eu durmo num quarto e a empregada em outro, por que diabo papai e mamãe se recolhiam, noite após noite, à alcova que partilhavam juntos? Estudei esse problema com afinco. Na tal alcova havia apenas uma grande cama — sem falar nos outros móveis, penteadeira, armário, etc. Mas a cama era uma só, e bem grande. Por quê? Em determinadas noites, eles apagavam a luz e faziam uns barulhos esquisitos, no escuro. A cama rangia. Eu pensava que mamãe devia ser uma pessoa de saúde frágil, tanto que papai tinha que ficar junto dela a noite inteira e, às vezes, ela soltava uns suspiros, ais, uivos, e eu rezava para que não morresse.

Mas as minhas orações não adiantaram nada. A barriga dela começou a crescer. Foi inchando, coitada. Os meses passavam e ficava cada vez mais barriguda. Eu tinha tanta pena dela, achava que ia explodir feito um balãozinho de aniversário. Mas qual nada. Nove meses depois que a doença se manifestou, nasceu um bebê. Disseram que era meu irmão e que tinha sido trazido pela cegonha. Mas eu interroguei a empregada e ela me explicou direitinho de que forma as crianças nascem. Tive a impressão de levar uma paulada na cabeça. Minha santa mãe, tão recatada à luz do dia, transformava-se numa... numa... numa não sei o quê, assim que a lâmpada apagava.

Me tiraram do berço, me botaram numa cama estreita e transferiram o bebê para o meu berço. Fiquei com ódio daquele filho do pecado e, morto de vergonha, aos seis anos, comecei a frequentar as aulas, tendo a impressão de que todos os meus colegas e até a professora sabiam que eu era filho de pornô-pais. Sim, mamãe era pornográfica, e papai também! E não se arrependiam, tanto que algum tempo depois me arranjaram um segundo irmão.

Foi assim que descobri a minha vocação de censor. Às vezes, uma desilusão na infância tem o condão de nos tornar cidadãos úteis, probos e vigilantes. Hoje, eu próprio estou casado e tenho filhos. Me ensinaram a aceitar a triste necessidade de procriar. Mas faço tudo para que tal necessidade não venha carregada de sensualidade. Fecho os olhos e mando brasa. E corto toda cena de filme, todo quadro teatral que induzam os frágeis humanos a crer que procriar deva ser função precedida de manipulações eróticas.

Portanto, não me falem em permissividade, direitos da mulher ao prazer sexual, evolução dos costumes. Pego minha tesoura e corto. Eu sofri na carne a tortura moral da criança ao descobrir que sua própria mãe finge ser uma santa senhora, quando na escuridão da alcova não passa de uma... de uma...

Ah! Deixa pra lá!

jose-carlos-oliveira