A incongruência aparente é total; é possível que por baixo exista uma coisa qualquer unindo essas imagens, mas nunca chego até lá. O negócio é o seguinte: quando estou cansado demais e me deito durante o dia, o desfile começa, gente, bichos e objetos, sem qualquer ordem no espaço ou no tempo. Ainda há pouco, tirante as omissões que não interessam, foram passando por mim:

Um amigo recém-operado: aparentemente lúcido embora, só depois de uma semana compreendeu que estava num quarto de hospital e que não era o governador de uma ilha; CDA, o único dos cronistas que invariavelmente se despede, grave e lírico, de todas as coisas que desaparecem no Rio, prédios antigos, cinemas, bares, mercados, praças, tudo; o embaixador Rubem Braga vai passando pela rua Júlio de Castilhos, de repente dá um salto e se agarra ao galho de uma árvore, retornando ao chão com uma cara secreta de quem entreviu um pedaço de infância (isto aconteceu mesmo, há 15 anos); Joaquim Cardozo caminha devagar e é invisível para aqueles que não o conhecem (uma vez, ele deixou uma traça devorar um livro de luxo porque o desenho rasgado pelo inseto era muito bonito); aparece o menino de 8 anos, querendo dar sangue para o amigo hospitalizado (quando lhe digo que a idade mínima para isso é 18 anos, ele responde: “eu dou só um pouco”); driblando alucinadamente, aí vem o Garrincha, passa por três, centra em diagonal, eu entro e dou espetacular e ridícula furada na porta do gol; o Carlinhos Oliveira vai repetindo que a mulher adúltera é aquela que deseja ser feliz debaixo da cama; o Haroldo Barbosa me diz que o homem solteiro é aquele que pode saltar para a esquerda ou para a direita da cama; Tomas Mann diz que a cama é um instrumento metafísico (nela nascemos, amamos, sonhamos e morremos); passa boi, passa boiada: não é brincadeira, há sempre muitos bois em meu subconsciente, e por isso me arrepio com aquele boi descendo na enchente do verso do nosso Manuel Carneiro de Sousa Bandeira; há muitos anos, em Nova Iorque – me contaram – um  bêbado só conseguia dizer que a sua vida, a todo momento, era rodeada de cavalos; e, neste instante, o meu “show” sem pé nem cabeça apresenta Jayme Ovalle, olhando para o alto de um arranha-céu, procurando o Dr. Sobral Pinto; quem vem agora, consultando o relógio do bolso do colete, é aquele coelho de Alice no País das Maravilhas; passa o Rosário Fusco com um bando de gente (e há tanto tempo que não nos encontramos de fato); o Mário Cabral desculpando a todos, Deus e o diabo, o Leste e o Ocidente, a rosa e a bomba H, os discursivos e os concretos; depois aparece o Di Cavalcanti de braços dados com o Moacir Werneck, a caminho de um restaurante debaixo dos Arcos, com uma conversa que é somente deles; o Schmidt desce de um automóvel imenso com um cravo rubro na lapela; na hora da briga, surgiu de um táxi, vestido de pijama, o Loureiro, personagem tão misterioso para vocês quanto para mim, mas íntimo e obrigatório nas recordações de Emílio Moura; houve um momento, na esquina de rua México e Araújo Porto Alegre, no qual o desengonçado gigante cruzou com o anão, ambos claudicaram, e entreolharam-se, e eu vi, eu estava presente, eu testemunhei esse olhar que buscou por um segundo angustiado as causas obscuras da vontade de Deus; e aí vem, de camisa olímpica, o Vinicius de Moraes, morrendo de delicadeza; e, naturalmente, com ele, o Tom, carregando sem jeito um invisível embrulho, do qual tira música, medo, garrafas de cerveja e amizade; e passa a trinca, da qual sou o quarto mosqueteiro pateta: Pellegrino gesticulando, Sabino com o nariz fino e astuto, e o Lara, que faz questão do S de Resende e dos TT de Otto; um homem gordo, pesado e triste, perguntando ao livreiro se havia alguma novidade sobre Balzac; Luís Lopes Coelho desfila na passarela, a caráter, cantando Il Trovatore; passa um verso comprido como um comboio ferroviário, é de Claudel, e fala na detonação da grande vela que se infla, e de uma voz, de mulher, de criança, de anjo, que chamava: Verlaine! dentro da bruma; e a bruma (era fatal) traz a minha gaivota, gemendo na gelada cerração do porto.

 

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