Fonte: Toda crônica. Apresentação e notas de Beatriz Resende; organização de Rachel Valença. Rio de Janeiro, Agir, 2004, vol. I, p.543. Publicada, originalmente, no periódico Comédia, de 5/07/1919 e, posteriormente, no livro Marginália. São Paulo, Brasiliense, 1956, p.163.
Tenho dito muitas vezes que o único meio de atrair o público para o nosso teatro era abandonar os moldes estabelecidos para os vários gêneros de obras teatrais, quebrar, enfim, os quadros e fazer alguma coisa bem bárbara, participando, caso fosse possível, de todos os gêneros, drama, comédia, vaudeville, mágica, etc., e não sendo nenhum deles. Imagino uma sátira bem larga, bem fora do comum, em que se enquadrassem cenas de costumes, de crítica a fatos atuais e, até, pintassem elas coisas sentimentais.
Acabo agora mesmo de ler um livro sobre Aristófanes, do bem conhecido helenista francês Maurice Croiset – Aristophane et les partis à Athènes.
E a leitura do livro mais me convenceu que eu devia tentar o gênero. Aqueles Cavaleiros, as Nuvens, a Lisístrata e as suas outras muitas comédias, que eram os comentários grotescos, facetos, irônicos, mas meditados, dos acontecimentos sociais de sua terra, encheram-me de um entusiasmo de imitar, conforme me fosse possível, o inimitável Aristófanes, o sem-igual em todas as literaturas dramáticas.
Se eu fosse o senhor Coelho Neto, agarraria um di¬cionário das antiguidades gregas e desandaria na descrição de uma première da Os pássaros nas Dionísias Urbanas¹ ou nas Leneanas². Como, porém, tenho o indigente hábito de só descrever o que vejo, não me meto em tal cousa e deixo a Grécia clássica bem sossegadinha, bem mortinha no seu sepulcro milenar. Mesmo porque, eu me arriscaria a fazer uma descrição, não de um espetáculo ateniense do século V a.C., mas a de estreia de um qualquer ator francelho em um vaudeville de Feydeau, ali no cenotáfico³ Municipal, assim mesmo com o auxílio dos cronistas elegantes dos jornais, porque nunca lá pus os pés.
O que gostei no desenvolvimento da obra de Aristófanes, tal e qual a estuda em face da vida política, civil e militar de Atenas o senhor M. Croiset, foi o comentário cerrado de todos os fatos dessa vida, ano por ano, com uma independência de pensamento e uma autonomia mental que força alguma estranha pôde domar.
Imagino, mais agora, uma espécie de “parábase” numa grande comédia, ao jeito aristofanesco, comentando o nosso caso tão curioso e atual das “condecorações”, em que as vaidades se apertaram as mãos por cima de partidos, e a volúvel e caprichosa gramática portuguesa abençoou tão enternecedora reconciliação. Seria ou não uma coisa de comover a plateia até às lágrimas, ou talvez até ao riso, que muitas vezes as emoções tristes provocam?
Poderíamos fazer um coro de “almofadinhas” e “melindrosas” que explicariam bem o fervor guerreiro do nosso povo, durante a guerra de que acabamos de sair! e sua excelência o senhor Café havia de dizer com que heroísmo ele se portou ao lado das hostes aliadas.
Não dou aqui todo o esboço da peça ou farsa em que medito, porque a gestação não está completa, nem tampouco ainda comuniquei o plano ao meu colaborador Oduvaldo Viana, “rato” de teatro, escritor de grande talento para a cena, como tem provado, e que há de me iniciar nos seus mistérios, porque apesar da minha falada boêmia, que está ficando clássica, tenho muito medo das senhoras que pisam o palco e sempre delas fugi.
Contudo, há anos, já andei embrenhado numa troupe, em Juiz de Fora e Matias Barbosa, quando naquele primeiro lugar fui passar alguns dias com meu tio, o maestro Carlos de Carvalho, que por lá, com ela, andava.
Não cultivei o meio, por isso o medo voltou-me quando já o tinha perdido.
A minha peça – minha só não! nossa! – porque o Oduvaldo Viana é meu colaborador à força – há de ser qualquer cousa da Bruzundanga, uma guerra da, uma eleição da, o Estado da, ou outra coisa semelhante e parecida com isso; mas há de ser da Bruzundanga, porque o país de que mais gosto entre todos, inclusive o meu, é esse, e do qual brevemente o conhecido editor Jacinto Ribeiro dos Santos, estabelecido com a Livraria Cruz Coitinho, vai publicar as minhas notas de viagem por ele.
Espero que elas saiam, para tratar de representar a peça. Sei perfeitamente que havemos de ter muita rezinga com a polícia, a que um simples regulamento deu poderes inquisitoriais de censora do pensamento alheio, quando a Constituição etc., etc.
Mas todos esses obstáculos penso em removê-los e transformá-los em réclame para o nosso ensaio teatral.
Havemos de transformar as resistências, com força ativa para acelerar a marcha da nossa tentativa e atrair a atenção sobre ela.
A “Felicidade da Bruzundanga”, se assim ela se chamar, pode vir a ser um grande desastre; mas não o será porque não tenhamos querido criá-la com todo o entusiasmo e toda a liberdade de crítica e julgamento.
Eu também vou ser autor dramático...
Esperem.
_______________________________________
¹ Mais importantes festas religiosas de Atenas.
² Festival anual de dramaturgia, com competição, que ocorria em Atenas no mês de janeiro.
³ Relativo a cenotáfio, monumento fúnebre. Crítico constante da monumentalidade do Teatro Municipal, Lima Barreto não perde oportunidade de ressaltar seu caráter lúgubre.