No primor da elegância

 

 Fonte: Toda crônica. Apresentação e notas de Beatriz Resende; organização de Rachel Valença. Rio de Janeiro, Agir, 2004, vol. I, p. 568. Publicada, originalmente, no periódico O Malho, de 19/07/1919 e, posteriormente, no livro Vida urbana, São Paulo., Brasiliense, 1956, p. 172.

– Pois foi mesmo uma coisa que não sei como qualificar.

– Mas nunca tinhas jogado?

– Tinha; mas, em família, a vinte e dez réis o tento. Assim a sério, nunca! E ainda por cima ficar devendo dois contos... Livra!...

– Já os pagaste?

– Não; não foi preciso.

– Que diabo! Não te entendo!

– Queres ouvir a história tintim por tintim?

– Quero.

– Pois então ouve lá.

– Estou ouvindo.

– Andava eu muito arrebentado, devido à minha mania poética. Tinha empenhado os meus vencimentos – uma grande parte, bem entendido – a um agiota, para publicar o meu poema Luzes no nevoeiro. Lembras-te?

– Lembro-me. Por sinal que...

– Não fez lá grande feio, até... Bem! Continuo: assim, encalacrado, o que restava dos vencimentos era para comer e morar. Pacientemente, até com grande orgulho íntimo, por me ter heroicamente sacrificado às letras, eu ia passando meses, quando certo dia o meu colega de repartição, Segadas, perguntou-me: “Oh! Barcelos! Você nunca jogou no bicho?” Fiz um esforço de memória e respondi: “Uma vez, há muito tempo”. Segadas não se contentou com a minha resposta e disse-me ainda: “Escreva aí, num papel, um número de quatro algarismos, qualquer, compreendeu?” “Para que é?”, perguntei. “Ora!”, fez ele rindo-se. “Você sabe bem para o que é. Querem ver que você está se fazendo de tolo comigo?” Desconfiei que fosse para isso, mas Segadas era doutor em bicho. Comprava Mascote, Talismã e até uma revista mensal – O Mistério da Sorte – ele assinava. Como é que então me vinha pedir palpite, a mim que era néscio na bicharada? Enfim... Escrevi o tal milhar; e dei-lhe o papel com ele escrito. Examinou, abalou a cabeça com ar de dúvida e por fim exclamou: “Vamos ver... Dê-me aí um mil-réis – você tem?” Tinha e dei-o. Saí da repartição, sem mais me lembrar do caso. O meu espanto estava reservado para o dia seguinte. Assinei o ponto e, quando entrei na seção, ele veio ao meu encontro e fez com um ar muito expressivo, mas que eu não sei como qualificar: “Tem pelo, Barcelos! Ganhaste três contos e pouco”, acudiu ele. Suspendi a respiração; e explicou-me então ele que eu tinha, de sociedade com os dele, distribuído aqueles dez tostões no milhar, na centena, na dezena, no grupo; e meu lucro estava ali. Passou-me a bolada.

– Continuaste trabalhando?

– Qual! Pedi licença e saí. Meditei muito no que devia fazer. Pensei em pagar o agiota, mas pagá-lo, era dar-lhe lucro, pois o desconto seria insignificante e eu pagaria quase o mesmo que devia pagar daí a um ano e tanto... Não valia a pena! Não paguei e comprei roupas novas e outros aviamentos chics. No fim de vinte dias, o meu tesouro estava quase reduzido a pouco menos de três contos, embora a minha biblioteca se houvesse enriquecido e eu andasse no primor da elegância, pela Avenida, teatros, circos de esporte etc., mas sem sorte alguma. Diabo! fiz eu de mim para mim. Ninguém é profeta em sua terra. Preciso dar um passeio. Tinha lido uns versos de Olegário Mariano sobre Poços de Caldas e decidi-me ir até lá passar uns tempos, isto é, um mês ou dois, se tanto. Fui. Passei em São Paulo, onde me demorei uma semana. Queria ficar mais tempo. Aquele recato de São Paulo, aquela sua decência e pudicícia faziam evoluir um bouquet capitoso da taça dos seus prazeres e me inebriava. De noite, com as portas fechadas, no interior de alegres casas, era como se a linda cidade me dissesse: parecer não é ser. Mas... cumpria ir a Poços de Caldas e o fiz com esforço. Deixei a minha Cápua e lá fui para a cidade das águas de Juvência. Digo-te com franqueza que a cidade em si não me agradou. Aquele tom híbrido de roça e cidade, ainda mais acentuado com o urbano pavonear dos aquáticos, não era lá coisa de despertar-me ideias de beleza.

– E a paisagem?

– Ora! Para quem sai do Rio de Janeiro!!

– Em que hotel estiveste?

– Um bem catita e cheio de si, mas de cujo nome não me lembro. O que eu sei é que durante a primeira semana mal troquei cumprimentos com os outros hóspedes.

– Não jogaste?

– Não. Mas dei uma volta pela sala da roleta e observei o cavalheirismo dos banqueiros de lá, emitindo fichas mais baratas para as senhoras. É galante!

– Senhoras?

– Autênticas, filho! Lá, passa-se a linha equinocial para além da qual, como diziam os antigos, não há crimes. Em Poços, tudo joga: moças, meninas, matronas, barbadões sisudos, chefe de polícia, delegado, creio que até padres e irmãs de caridade.

– Não é possível!

– Pois vá lá, para veres só. Mas, como te dizia: não tinha até ali travado conhecimento algum, quando uma tarde após o jantar, estando sentado à varanda do hotel, um senhor bem-disposto dirigiu-se a mim e disse-me prazenteiramente: “Então doutor, está apreciando o crepúsculo de Poços? Com certeza é para ter saudades do Rio – não é?” Por aí fomos e travei conhecimento com o senhor coronel (da Guarda Nacional) Paulo Serpente. Era um homem tratável, fino, não parecia lá muito lido, mas denotava muita convivência com pessoas instruídas. Em uma semana, ele transformou a monotonia do meu viver. Fui ao salão, conversei, ouvi música, fiz até uma conferência literária – “Céus de Veneza” – onde nunca estive, e arranjei um amor pecaminoso sem inesperadas consequências. Uma tarde, o coronel perguntou-me: “Doutor, o senhor não joga poker?” Não esperava por essa pergunta, mas respondi com franqueza: “Jogo, mas mal”. “Não importa, é só para entreter.” Acedi, sem nenhuma repugnância. Após o jantar, ele me procurou e disse-me prazenteiro, mesmo à roceira: “Vamos à coisa, doutor!” Indaguei: “E os parceiros?” “Já estão lá na sala.” Fomos, eu e ele. A sala de jogos de cartas ficava num pavilhão paralelo àquele em que se jogava o baccara, a roleta, etc. Entre os dois uma espécie de jardim largo, mas bem maltratado e pouco iluminado. Fui apresentado ao doutor Simões Espinheiro, grande advogado no Rio; e o outro era um senhor Eufélio dos Anjos, que já conhecia por ser companheiro inseparável do coronel. Preparamos mesa, etc. e marcamos o valor da ficha. O advogado queria que fossem a dez mil-réis. E eu, para não fazer feio, concordei e Eufélio e o coronel, porém, julgaram melhor ser pela metade. Cada um de nós adquiriu cem fichas, quinhentos mil-réis; e começamos o jogo, hands, trincas, four... trepações, enfim, toda aquela complicação, não havendo limite nas apostas. No fim de meia hora, tinha perdido tudo; no fim de hora e meia, só me restava o dinheiro do hotel. Quis levantar-me mas o coronel opôs-se e adiantou-me mais quinhentos, em fichas, mas de beiço. Perdi. Pedi mais, perdi. Pedi mais e só de beiço, dois contos de réis. O tal advogado foi mais caipora do que eu, também era mais afoito, o bobo. Perdeu dezoito contos em cerca de três horas. Encheu cheques sobre um banco de São Paulo, deu a cada um o que competia; e levantou-se sorridente, cheio de indiferença. Mais tarde, vim a saber que ele pusera fora toda a fortuna da mulher. Era por isso. Por minha vez saí e procurei no jardim um lugar escuro onde chorasse as minhas mágoas. Como havia de pagar aqueles dois contos? Onde arranjar aquele dinheiro? Tinha que me ir embora no dia seguinte... Nisto, surge-me o coronel Serpente, que me fala: “Doutor, vamos jogar roleta?” Verdadeiramente acabrunhado, respondi-lhe: “Qual, coronel! Tenho sido tão caipora! Até não sei como...” Não acabei a frase. O coronel tirou da algibeira dois pacotes e mos deu. De espanto, eu não falava; ele, porém, disse-me com voz de amigo: “O doutor não nos deve nada. Leve o seu dinheiro. O senhor sabe que são precisos quatro parceiros, pelo menos, para jogar o poker? O doutor era-nos preciso, para depenar aquela paca, o Simões. Boa noite”

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