Nasci pelas bandas da Saúde, nos fundos de uma lavanderia em um vasto lameiro em que proliferam milhares de irmãos meus.
Aí cresci e fiz-me homem, quero dizer, fiz-me mosquito, e esvoacei, ares em fora, a zumbir e a cavar honradamente a vida, como qualquer engenheiro desempregado ou médico sem clínica.
Pousei num queijo de minas, no nariz de uma senhora, nas chagas de um mendigo, que nesse tempo ainda os havia pelas soleiras das portas, e de pouso em pouso transpus os umbrais de uma casa nobre e, oculto a um canto do dormitório, esperei pacientemente que a noite chegasse e que buscasse os lençóis o chefe da casa, para zumbir-lhe aos ouvidos, impertinente como um candidato.
Seria meia-noite quando um moço de grandes melenas, tipo da Renascença, despiu a sobrecasaca solene, o colete branco, as calças negras, a camisa de linho, e enfiou o roupão de dormir, persignou-se e deitando-se puxou sobre as pernas o cobertor vermelho, que a noite estava fria e um vento sibilante cantava lá fora a prometer influenzas.
Um sopro rápido de pulmões fortes extinguira a chama indecisa da vela de estearina pousada num castiçal art nouveau, sobre o criado-mudo.
Esgueirei-me então do meu esconderijo e de manso, contendo o voo, aproximei-me do leito em que, deitado, o moço de melenas bastas erigia castelos de glória, planos de nomeada e fama, enquanto o sono não lhe cerrasse as pálpebras e os sonhos bons não lhe viessem povoar as horas de descanso e calma.
Pousei então sobre o seu nariz aristocrata, procurando sugar-lhe o sangue novo, para alimento do meu corpo débil.
Ele com um movimento brusco de mãos enxotou-me; voltei; palmas soaram fortes e por um triz não fiquei esmagado entre as suas mãos de princês, recendentes a “Coeur de Jannette”. ¹
E então por vingança, que nisto muito se parecem os mosquitos com os homens, jurei aos meus deuses persegui-lo a noite inteira com o mesmo zumbido contínuo e azucrinador.
E durante as oito horas de repouso o moço de grandes melenas não pregou os olhos, mercê da peça que eu lhe estava pregando, e de quando em vez profanavam a severidade e compostura do aposento do jovem de cabeleira as sílabas ferinas e acutangulares de uma ameaça ou de uma praga!
Vinha a Aurora, serena e docemente esbatendo as sombras da noite, dando ao quadro matinal a finura de nuances de uma aquarela do João Ribeiro, “artista notável” e notável filólogo desta incomparável terra de filólogos, artistas, sapateiros e encadernadores.
O jovem de melenas bastas saltou do leito, deu um bocejo e estirando os braços numa delícia gritou:
– Os mosquitos hão de pagar-me caro a noite mal dormida! Adão pecou e a humanidade ainda hoje lhe expia o crime feio; pois bem, este mosquito é o Adão da sua raça! Por ele pagarão todos! Serei inexorável – guerra de morte e de extermínio! Delenda est mosquito!
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¹ Perfume feminino lançado em 1899, que conquistou grande popularidade no início do século XX