Fonte: Toda crônica. Apresentação e notas de Beatriz Resende; organização de Rachel Valença. Rio de Janeiro, Agir, 2004, vol. II, p. 39. Publicada, originalmente, na revista Careta, de 18/10/1919 e, posteriormente, no livro Marginália. São Paulo, Brasiliense, 1956, p. 97.
À vista do doloroso acontecimento da Avenida em que foi vítima uma excelente senhora da melhor sociedade, a nossa polícia resolveu tomar medidas extremas contra os viciosos que abusam de narcóticos de várias espécies.
Não sabemos de todos os nomes das pessoas que vão ser vítimas da ação energética do enérgico Nascimento e Silva, mas temos notícias de alguns.
A primeira pessoa que vai ser procurada pela ativa autoridade é um tal Rabelais, que nasceu em França, em Chinon, e escreveu o Gargântua e Pantagruel.
Não nos consta que ele tivesse cometido nenhum assassinato, mas escreveu esse livro que todo mundo lê e só os policiais não leem. Não direi que isso seja uma honra para os bacharéis delegados ou uma desonra para eles.
Um outro que está na lista é um Edgard Poe, que publicou umas originais Histórias extraordinárias, que Nascimento, Chagas e outros delegados, inclusive o Geminiano, chefe deles, só conhecem de nome.
Este bebia mais do que aquele, e bebidas fortes. Sei bem que ele não matou; foi morto.
A prisão mais difícil é a de Lord Byron, grande da Inglaterra e poeta dos maiores.
O embaixador inglês já está de alcateia, para enviar uma nota contra qualquer violência contra a pessoa do autor do Childe Harold.
Parece que aí vai parar a ação repressora da polícia carioca contra o alcoolismo, porquanto a Inglaterra dispõe de uma grande esquadra e, desde a questão Christie, nós sabemos o que ela vale.
Coleridge também está ameaçado; mas também é inglês...
Mário Coelho é brasileiro e bebia, por isso quem vai pagar o seu estúpido crime devido à embriaguez são os brasileiros.
Sendo assim, vão ser processados o romancista Bernardo Guimarães e o poeta Fagundes Varela.
Embora tenham deixado obras imperecíveis, é preciso que assim se faça, para mostrar a força moralizadora da polícia.
Nunca assassinaram ninguém; mas escreveram muito. Eis aí o seu crime.