Fonte: Toda crônica. Apresentação e notas de Beatriz Resende; organização de Rachel Valença. Rio de Janeiro, Agir, 2004, vol. I, p. 184. Publicada, originalmente, na revista [Careta], de 3/04/1915 e, posteriormente, no livro Marginália, Brasiliense, 1956, p.212.

Um dia destes, encontrei um senhor vestido de ganga, com um chapéu-de-sol, de cabo de volta, rosto tostado pelo sol, que me perguntou qual o bonde próprio para ir ao morro da Graça. Ouço muito falar em tal morro, mas não sei se há bonde próprio para lá ir. Pelo que tenho ouvido dizer, creio mesmo que o veículo mais próprio são os nossos pés e devemos subi-lo como os devotos sobem os degraus da Penha: de joelhos.

É punição bastante digna quando se está diante de Deus, mas pouco decente quando se trata de ir à presença de qualquer mortal, por mais poderoso que seja.

Disse ao matuto isto e ele não se espantou.

Continuou a conversar comigo e notei que aquele candidato a vítima do conto-do-vigário era um espertalhão de marca. Contou-me que era candidato a deputado. Perguntei:

– Foi diplomado?

– Fui.

– Por que junta?

– Pela minha.

– É a legal?

– A minha junta é sempre legal.

Gostei imensamente do critério de legalidade do futuro legislador e indaguei:

– Que pretende fazer na Câmara?

– Eu? Não pretendo fazer nada, mesmo porque não entendo desses negócios de “falação”, nem de “leises”, nem de “franciús”. Olhe, menino, quer que lhe conte as coisas tais quais são? Ouça.

Acendeu um enorme cigarro e emendou:

– Eu tinha alguns cobres e sempre trabalhei nas “inleição” pelo senador Chavantes. Trabalho há muitos anos. Ultimamente perdi muito dinheiro “na” campista. Apareceu lá pela terra o demônio de um turco que ganhava a mais não poder. Quero tampar o rombo e só achei um caminho; fazer-me deputado por meu distrito.

– Teve grande votação?

– Que votação, menino! Isso é lá preciso!... Eu tenho atas e atas, livros e livros... Não preciso mais nada.

– Mas o seu rival talvez tivesse eleitores e...

– Que eleitores! Pra quê? Eleitores são as assinaturas dos mesários e arranjei um espanhol que faz “elas” tão bem como cada um deles.

– E o reconhecimento?

– É disso que vou tratar com o general. Vou lhe dizer que, se ele arranjar o meu reconhecimento, ponho até cabresto e barbicacho.

– Então vai ao morro da Graça?

– Vou.

– A pé e subi-lo-á de joelhos?

– Não. “Inté” o morro, vou de “intumove”, mas para a casa do “home” subo de quatro. “Inté” logo, moço. 

lima-barreto