Fonte: Toda crônica. Apresentação e notas de Beatriz Resende; organização de Rachel Valença. Rio de Janeiro, Agir, 2004, vol. I, p.334. Publicada, originalmente, na revista Lanterna, de 4/05/1918 e, posteriormente, no livro Vida urbana, Brasiliense, 1956, p.141.
Esse negócio de saúvas preocupa-me desde menino, quando o meu velho amigo Policarpo Quaresma narrou à minha infância curiosa os suplícios que elas o fizeram sofrer, ao tempo em que se improvisou agricultor.
Já narrei alguns dos episódios da sua luta com elas, em um modesto livro onde expus grande parte de sua vida e descrevi o seu triste fim.
De uns tempos a esta parte, toda gente, especialmente os agricultores da administração, deu em se preocupar com tão daninhos e inteligentes insetos; e, se Policarpo vivesse, ficaria exuberantemente satisfeito com isso.
O senhor prefeito, em boa hora, deitou um regulamento que cogita desse assunto, sobremodo importante para todas espécies de cultura.
Não li todo o regulamento, mas os jornais deram extratos e por eles soube que Sua Excelência, por artigo do mesmo, manda o proprietário, o arrendatário ou o locatário extinguir os formigueiros que houver nas respectivas propriedades.
Sem ser versado em leis, julgo que já existia uma velha postura municipal nos mesmos termos. Creio que foi Policarpo Quaresma quem me informou isso.
Essa velha postura nunca produziu efeito, como o artigo do regulamento do senhor Amaro nada adiantará, e isto pelo simples fato de não determinar precisamente quem deve matar as formigas.
A lei cita três espécies de tenentes do terreno, mas não diz claramente qual deles é o responsável, de modo a estar sempre disposto o locatário a empurrar a bucha para o proprietário, e este para aquele; e, durante esse jogo de empurra, as formigas vão ficando em paz e devastando hortas, jardins, pomares e outras plantações.
Nada entendo de leis, nem quero entender. Sou radicalmente contra elas, pois me julgo de algum jeito maximalista; mas estou disposto a transigir a esse respeito, algumas vezes. Vou ceder agora, neste caso...
O senhor Amaro, que entende delas e foi o alto juiz, pode bem dar mais precisão ao artigo, indicando precisamente quem tem o dever de matar as saúvas que ocupam tal ou qual terreno.
Podia o senhor doutor prefeito fazer ainda mais. Organizar uma brigada – não precisava brigadas: bastava um regimento de homens afeitos ao mister de extinguir formigueiros, acantoná-los em determinadas zonas e oferecer os serviços deles, mediante módico pagamento, aos que tivessem a obrigação legal de exterminar dos seus terrenos os depredadores himenópteros.
Não se faz e se fez isso com os mosquitos?
Poder-se-ia, penso eu, realizar modestamente o mesmo para guerrear as formigas.
Então, desde que o regimento ou a brigada estivesse organizada e acantonada nas zonas que necessitam dos seus serviços, o governo municipal devia perseguir os refratários com todo o rigor da lei.
Julgo tudo isso prático, porque, morando em pequena chácara, em Todos os Santos, e tendo o porão da casa cheio de formigueiros, não os extermino por dois motivos: 1º) não as sei matar e não conheço quem saiba; 2º) mesmo que soubesse matar saúvas, muito humanamente, em face da lei dúbia, estava disposto a empurrar a bucha para o proprietário, que pode mais do que eu. Eis aí.