Fonte: Toda crônica.  Apresentação e notas de Beatriz Resende; organização de Rachel Valença. Rio de Janeiro, Agir, 2004, vol. II, p.435. Publicada, originalmente, na revista Careta, de 1/10/1921 e, posteriormente, no livro Vida urbana, Brasiliense, 1956, p.265.

É bem possível que, sob o governo desmontador do senhor Carlos Sampaio, os serviços da prefeitura não tenham progredido ou desempenhado o papel normal que lhes cabe; mas uma outra iniciativa não se pode negar a esse iluminado prefeito que está aí, homem ultrapoderoso que até desafia, com a sua engenharia de máquinas de lama, as fúrias do Oceano.

Em matéria de higiene, só lhe resta, ao que parece, a Assistência Pública Municipal, que, graças a Deus, ainda continua a ser uma instituição benemérita, muito pouco oficial, pela sua presteza e solicitude. Dou disto testemunho pessoal, pelo menos no que toca ao posto do Méier.

Em matéria de obras, o serviço da prefeitura é valorizar as areias de Copacabana e adjacências e bater-se contra os furores de indignação do Mar sem fim e sem amo.

Em matéria de instrução é que se abre uma exceção e, também, onde não se pode negar ao atual prefeito uma útil iniciativa, como já notei mais atrás.

Todos os prefeitos do Distrito Federal (que nome horrível!) sempre se voltaram para a instrução pública: uns, construindo edifícios para escolas; outros, instituindo estabelecimentos de ensino profissional; outros, lembrando a criação de escolas noturnas para adultos ou para crianças; um outro, muito sabiamente, o maior, aboletou numa escola, que não cabia duzentos, mil e quinhentos alunos. O doutor Sampaio fez cousa mais extraordinária: de um dia para outro, decretou que todas as crianças pobríssimas, tais são as que comumente frequentam as escolas públicas, soubessem pronunciar francês. Disraeli nunca o soube bem; Diez, que, teoricamente, o sabia como ninguém, segundo Gaston Paris, tinha dificuldades em falá-lo desembaraçadamente; mas – como são as coisas desta terra e o quanto pode um ukase do ultrapoderoso doutor Sampaio! – as crianças do Rio de Janeiro, num instante, aprenderam-no logo e cantaram magnificamente o hino belga, em coro, caindo de inanição, de sede e insolação, na Quinta da Boa Vista. Contam que o Rei Alberto, que recebia a estranha homenagem, dissera, ao ouvi-las:

– Quando cantado, o português se parece muito com o francês.

O municipal poliglotismo infantil não ficou só nisso. A ideia do senhor Carlos Sampaio proliferou. Há dias comemorou-se o sexto aniversário da morte de Dante; e, conforme li nos jornais da ocasião, os meninos e meninas das escolas públicas iriam cantar, em italiano, um hino ao altíssimo poeta.

Vai ou não vai em marcha a ideia sampaiana?

A petizada dos colégios municipais, nesse andar, acaba falando ou cantando todas as línguas do globo; e é de esperar que, quando vier aqui o imperador dos maoris, ela saiba também entoar o lindo hino da terra de tais antropófagos, o “Pihé”, que diz assim:

Papa ra te wati tidi
I dounga nei...

Um tão estupendo melhoramento municipal, pelo que lhe somos eternamente gratos, devemos a iniciativa do senhor Carlos Sampaio. Que homem viajado!

lima-barreto