Fonte: Caderno B, Jornal do Brasil, de 16/03/1970.

Consideremos, num banco de estação rodoviária, uma jovem mãe sentada, serena, com o bebê nos braços. Dorme o bebê, e o ônibus em que viajarão chegará, digamos, daqui a cinco minutos. Conhecendo o horário das chegadas e partidas, a mulher não vê motivo para impacientar-se. Tem já a passagem na bolsa, as coisas estão em ordem: eis porque comecei por lhe atribuir serenidade.

Consideremos agora um homem que venha andando, talvez assoviando baixinho, ou carregando com dificuldade duas ou três malas muito pesadas. Pode ser também que ele faça as duas coisas: assovie e carregue. Ou que nem assovie nem carregue. Quero apenas que ele, avistando o banco onde está a mulher, e verificando que nele cabe mais de uma pessoa, se decida por um rápido descanso. Senta-se, pois, o nosso homem, pousando no chão as malas — se as tem, e conservando nos lábios entreabertos aquela música melancólica, sonambúlica, que traz consigo há já não sei quanto tempo — se é que a traz, o que não tem a menor importância.

Ei-lo finalmente sentado no mesmo banco, mas a apreciável distância da mulher. Nota-se que não se conhecem, adivinha-se mesmo quem não se apercebe da presença do outro. Entre eles há tão-somente uma relação de vultos, uma descuriosidade recíproca. Mas já, já, compartilharão uma experiência.

Acontece que o bebê acorda e chora, e no ato se quebram os dois compartimentos estanques: a mulher e o homem são agora vasos comunicantes. Dirigindo-se à criança que chora, o olhar do homem colhe ao mesmo tempo a mulher que o segura inclinando-se para o filho, o rosto da mulher retrocede subitamente, voltando-se então para o homem. No sorriso da desconhecida, o desconhecido lê:

— Desculpe-me, senhor, se meu filho, chorando, desviou-o de suas cogitações...

E no sorriso que lhe devolve ela escuta: “De modo algum, senhora”.

Na estação rodoviária, obedecendo a uma lei elementar da sociedade, o homem abstrairá doravante mulher, criança e choro. Refugiado em seu perfil, fitará um ponto qualquer à sua frente, para que ela se sinta à vontade. E ela, igualmente afeita àquela sequência de ditames não escritos e que se chama boas maneiras, rapidamente se circunscreverá a si mesma, perfil inclinado sobre um recém-nascido inquieto.

Ora, o pranto filial, a principio queixume, em seguida clamor argentino, alcança agora uma veemência estridente. Em vão a mãe introduz a chupeta na pequena boca: ela é cuspida na mesma hora, sem interrupção do berreiro. Resta à pobre mulher, após consultar o relógio, reconhecer a legitimidade daquele protesto. O relógio dá inteira razão ao bebê: está na hora de mamar.

Na estação rodoviária, uma blusa é desabotoada; um seio túmido, clarinho, aparece: pequenos lábios rosados se precipitam ávidos, para um rosado bico de seio. O garotinho mama; a mãe se deixa mamar. Mergulhada nas profundas de uma atividade imemorial, só muito lenta, muito lentamente ela há de se dar conta de um mal-estar crescente, uma comichão instalada em seu perfil: e quando, finalmente, sua consciência se reencontra rente aos olhos, devolvida às circunstâncias que a cercam, num gesto brusco de cabeça ela surpreende o homem — olhando. E ela, que possui um seio materno, vê-se agora a mercê de um seio de mulher. Está nua na estação, transformada em objeto de concupiscência. O sangue lhe aflora às faces.

“Estranho”! Pensa ela rapidamente. “Desde que o mundo é mundo, as mães amamentam os filhos. Mas o olhar deste homem transformou o meu seio num emblema do pecado. Estou envergonhada, culpada. Porque, se leio nos olhos dele a lascívia despropositada, leio também a reprovação. De modo misterioso, mas incontestável, ele me censura! De modo misterioso, este homem é louco varrido, pois não tolera que a mãe deva possuir seios com que amamentar o filho”!

Na estação rodoviária, a pressão do olhar lascivo-reprovador do homem desmantela a convicção, em que estava a mulher, de conduzir-se conforme a natureza e os bons costumes. Assim despojada de todo critério, mas não podendo nem querendo interromper a alimentação do bebê, ela termina por esconder o filho e o seio sob um lenço.

jose-carlos-oliveira