Fonte: Caderno B, Jornal do Brasil, de 23/01/1968.

Ontem, ao voltar do trabalho, cumpri como sempre o meu ritual vespertino. Tirei o paletó, afrouxei a gravata, preparei uma dose de uísque, sentei-me na cadeira de balanço e comecei a bebericar o divino fortificante escocês. Essa cerimônia cotidiana me faz bem. Gosto de estar assim, nessa hora, bebendo e contemplando minha mulher, Heloísa, que na poltrona do outro lado da sala, com as pernas cruzadas sobre o espaldar, lê vagarosamente um jornal. Mas ontem ela interrompeu bruscamente a leitura e me olhou de um modo inteiramente novo. E disse: “Infelizmente, temos que nos separar”. Fiquei algum tempo apatetado, com o copo na mão, e finalmente consegui articular uma pergunta: “Como disse?”. “Você ouviu bem”, respondeu ela. “A separação é inevitável”. “Mas somos tão felizes”, argumentei. “Felizes?”, repetiu ela, com entonação feroz. “Felizes, nós? Você acha que uma mulher pode se considerar feliz ao lado de um homem que só a desposou para compensar um complexo de inferioridade? Responda”. Balbuciei qualquer coisa que não recordo. O fato é que não tinha resposta. “Minha querida”, supliquei, “por favor, desejo maiores esclarecimentos. De que é que se trata”? Num salto ela se despencou da poltrona e veio parar a um passo de mim: “Leia”, disse, e me entregou o jornal aberto na página 11, Segundo Caderno. Comecei a ler um artigo intitulado “Por que não usar cílios postiços”? Heloísa, porém, arrancando o jornal de minhas mãos, comentou: “Engraçadinho! Não se faça de desentendido. Estou pedindo que você leia o artigo intitulado ‘A sedução feminina segundo Hitchcock’, sobretudo o parágrafo número 11”. Devolveu-me o jornal e li, no tal parágrafo 11:

“Uma mulher alta deve procurar um homem alto. Mesmo que ela seja muito segura de si, como Ingrid Bergman, deve transigir usando sapatos de salto baixo. Se um homem de baixa estatura parece interessar-se por você, positivamente está procurando compensar sua inferioridade a esse respeito. A mulher alta não deve ser um tipo galanteador nem se prender ao homem como uma trepadeira. Psicologicamente, um homem sente-se superior a uma mulher mais baixa do que ele — e isto constitui toda a vantagem da mulher baixa”.

Compreendi instantaneamente. Acontece que Heloísa tem 1,75m, ao passo que eu sou apenas dois dedos maior do que Napoleão Bonaparte. (A comparação, aliás, é um tanto paranoica, traindo o meu sentimento de inferioridade). Mas, meu Deus, com complexo ou sem complexo, amo Heloísa, e decidi lutar pelo meu amor:

— Lembre-se de Ingrid Bergman, minha querida. Rosselini era um tampinha e, no entanto...

— E, no entanto, redarguiu ela, foram de tal modo infelizes que começaram a fazer maus filmes. E hoje estão separadíssimos.

— Está bem, está bem. Mas, e o caso de Carlo Ponti? Ele também é baixotinho, e, no entanto, a Sophia Loren é tarada por ele.

— Não me venha com Sophia Loren disse ela. — Essa é das tais mulheres altas que se prendem ao homem como uma trepadeira, de acordo com as palavras de Hitchcock. O fato é que não fico nem mais um dia sob o mesmo teto com um homem cuja cabeça mal chega ao meu ombro. Faça o favor de arrumar suas coisas e ir para um hotel.

Obedeci. Humilhado, mas obedeci. Agora não sei o que fazer. Estou num pequeno hotel de Copacabana e não compreendo como pode um jornal tão conceituado, do qual sou assinante e cujas histórias em quadrinhos leio, incutir ideias malsãs no cérebro da minha esposa. Será isso o que se chama imprensa marrom-glacê? Mas pouco importa, pois o mal já está feito. A única solução seria, talvez, publicar na mesma página, com o mesmo destaque, um anúncio capaz de despertar o ciúme de Heloísa. Um texto mais ou menos assim: “Escritor recentemente desquitado procura jovem e formosa anã para fins de casamento sem motivações freudianas. Um metro e meio no máximo — quando de saltos altos”.

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