Periódico
Manchete

Publicada, posteriormente, no Jornal do Brasil, de 19/02/1989, com o título "Memórias de Vinicius de Moraes", e nos livros Murais de Vinicius e outros perfis, de 2000, pp. 25-27, e O mais estranho dos países, de 2013, pp. 223-226, com o título "Em Paris", e pequenas alterações.  

O poeta meu amigo, brasileiro que nem eu, vivia então em Paris. Depois de trabalhar angústia durante muitos anos, tinha chegado a um estado de intangibilidade quase absoluta: a dor que vem de dentro não o tocava mais, só a dor que vem de fora. Pequenos contratempos cotidianos não mais o afetavam, enquanto que, por outro lado, ele tinha torcido o pescoço da inquietação metafísica. Convencido de que o homem deve reformar-se, corrigir-se, e que um outro tempo de realizações aguarda a humanidade, fazia de sua existência o reflexo antecipado dessa esperança, dessa ternura que se projetava do futuro. Fatos e ideias que circulavam fora dessa órbita não mais o interessavam.

Aí entra o automóvel, primeiro caso desta crônica. Vi o poeta perder o seu único bem material, o automóvel, como quem perde um embrulho de camisas velhas. A aurora entrava no céu e tínhamos fome de sopa de cebola e sede de vinho branco. Fomos a Les Halles e nos fartamos, e o dia esquentou e começou a arder nos olhos. Vagamos sem direção pelo grande mercado até que a fadiga nos fez fatigados de criaturas e hortaliças. Mas... cadê o carro? Andamos mais um pouco, fizemos um esforço para lembrar onde ele estava, e nada. Quis insistir, varejar todas as redondezas, mas ele se opôs. O poeta tomou o táxi que passava, me levou para o hotel e foi para a casa.

No dia seguinte, às seis horas da tarde, novamente nos encontramos. Achou o carro, perguntei logo. Não, ele respondeu distraído, a polícia o procura. E acrescentou no mesmo tom: “Mas acha que foi roubado”. De fato, duas ou três horas depois, a polícia informava de que desistira de encontrar o automóvel. O poeta começou a rir e explicou que tinha feito todos os planos para viajar de carro no dia seguinte para Cannes. Chamou o garçom e o encarregou de providenciar uma passagem de trem. Insisti com ele, e outras pessoas presentes me secundaram, que tomássemos um táxi e refizéssemos o itinerário da véspera. Sorriu com uma bizarra tranquilidade “Nem que fosse um Rolls-Royce último modelo eu largaria agora meu uisquinho”.

Alta madrugada, concordou que déssemos uma batida rápida no local. Meia hora depois, encontramos o carro, direitinho, talvez só um pouco assustado de se ter perdido de seu poeta e dono. Aí, fomos dar uma volta e, ao passar pela Ponte Mirabeau, o poeta murmurou aqueles versos definitivos sobre o sortilégio do tempo e do amor:

Sous le pont Mirabeau coule la Seine
Et nos amours 
Faut-il qu’il m’en souvienne 
La joie venait toujours après la peine
Vienne la nuit sonne l’heure 
Les jours s’en vont je demeure.

Wilhelm-Apollinaris Kostrowitski foi um coração formidável. Tornou-se poeta e amigo de seus amigos sob o nome de Guillaume Apollinaire. Eram dele os versos que o poeta recitava.

Ora, deu-se então o segundo caso desta crônica. A janela do meu quarto no hotel dava para os fundos da Igreja de São Tomás de Aquino. Eu estava prostrado na cama, depois de ter flanado um dia inteiro. De repente os sinos da igreja começaram a tocar lá fora e dentro de mim, e eu me levantei e escrevi umas linhas descompassadas, que peço licença de transcrever aqui, para a mais clara compreensão do texto:

 

Na igreja São Tomás de Aquino 
meu bom Apollinaire se casou. 
De manhã, de tarde, não sei. 
Seu coração se alvoroçou. 
Doeu no ar o som do sino 
na Igreja São Tomás de Aquino quando 
Apollinaire se casou. 
Não se vê se o tempo passou. 
Sei que me dói o som do sino 
de quando Guillaume se casou. 
O sino bate, o sino fere, o mesmo sino 
de quando a Grande Guerra terminou. 
Próximo a São Tomás de Aquino 
um quarto de hotel me fechou 
quando em mim caiu o sino que para as bodas soou. 
Na Igreja São Tomás de Aquino 
meu coração não repousou. 

 

Versos sem importância, pobres, mas inelutáveis, inclusive em sua desunidade rítmica. Eu me lembrava do ano em que Apollinaire se casou naquela igreja: 1918. Mas ignorava o dia. Semanas depois, consultando um livro, vi com doce encanto que a data do casamento de Apollinaire aniversariava com o dia em que escrevi meu poeminha: quatro de maio.

Sorri comovido como quem recebe uma confidência feliz.

paulo-mendes-campos
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