Fonte: Caderno B, Jornal do Brasil, de 28/08/1977.

E Pelé, hem? Hoje ele pode ser campeão dos Estados Unidos. Já é, portanto, vice-campeão. Com grande júbilo, anuncio aos invejosos que também estou morrendo de ciúmes!

Sim, saibam que Pelé tem entre nós uma legião de contra-admiradores fanáticos, pessoas que não suportam ouvir falar nele. Esse sentimento paradoxal se manifesta principalmente nos meios intelectuais ditos sofisticados. Pessoas ajuizadas, boas praças, generosas, sempre a favor das minorias sofridas, pessoas enfim que desfilam no bloco da esquerda festiva, esse grupúsculo mais carnavalesco que ideológico, e que aliás conta com minha irreprimível simpatia – tais pessoas, dizia eu, odeiam Pelé. Odeiam-no, amorosamente. Já o apelidaram de "preto de alma branca". Milhões de vezes lhe cobraram uma posição política. Consideraram hipócrita sua atitude ao fazer mil gols, quando chorando ele exclamou: "Pensem nas criancinhas pobres!". Queriam que ele erguesse o punho fechado e aderisse ao penteado afro, ainda que desta forma estivesse apenas copiando os negros norte-americanos dos anos 60.

Faz parte do folclore de Ipanema a conduta irracional de determinado senhor, humanista com carteirinha e tudo, que ia ao Maracanã ver Garrincha sua paixão. Garrincha e Pelé na Seleção Brasileira. No Maracanã ou na transmissão televisiva, o ilustre senhor vibrava de alegria, no momento em que a bola ia na direção de Garrincha. Garrincha então soltava um passe na medida para Pelé... e aí o nosso personagem tirava os óculos! Recusava-se a ver Pelé; embora relutante – era cartesiano – admitiria a existência dos discos voadores; mas Pelé, de jeito algum. Cartesianamente, tirava os óculos enquanto Pelé mandava brasa: gol do Brasil! Gol de Pelé! Nosso amigo, míope por ter tirado os óculos, fazia um ar debochado; lia-se em seu rosto em letras garrafais, a síntese magistral da mais alta especulação filosófico-futebolística: "Não o vejo; logo, ele não existe".

Recentemente, outro intelectual, dos mais aguerridos e cultos, comparava Pelé a Carmem Miranda, sendo que para ele Carmem Miranda não passara de uma exótica jogada diplomática de Tio Sam – empacotada, junto com o papagaio Zé Carioca e mais Xavier Cugat e sua banda, etc. etc., – empacotada na grande empulhação dos povos latino-americanos, de alguma forma implícita na política de boa vizinhança do Presidente Roosevelt. Dá para entender (embora eu não concorde) a suspeita de que Carmem tenha sido usada para esses fins de propaganda espúria; mas Pelé?

Pois bem, agora compreendo nitidamente o que ia na cuca do sublime Pascoal, ao nos advertir que o coração tem razões que a própria razão desconhece. Aplaudir Pelé, reconhecer sua fulgurante passagem neste planeta, desejar-lhe longa, e ainda mais venturosa vida – sinceramente, é demais. A gente aqui sofrendo por falta de amor, de dinheiro, de talento, de comida, de direitos democráticos – sofrendo neste vale de lágrimas incompreensível, amaldiçoando o dia em que nascemos... E lá vem Pelé e desmente tudo. A felicidade é possível neste mundo, a vitória é possível, a alegria é possível! Por que teria Deus escolhido Pelé, e não eu? Eu aqui escrevendo uma crônica, cavucando um modesto cantinho, no último e mais desconfortável vagão do TEP (ou seja, o Trem da Estima Pública)... Eu aqui sujeito a todas as intempéries da existência, e o crioulo lá, bem no alto, único entre os atletas desta segunda metade do século, pobre e rico, e ainda por cima bem casado, pai amantíssimo, filho maravilhoso!

Não dá. Realmente não dá. Eu também odeio Pelé. Não me falem mais em Pelé.

Contudo, lá está ele, Edson Arantes do Nascimento, o menino pobre que em longínqua e misteriosa noite de Natal ganhou de presente o mundo e Papai Noel lhe disse: "Isto é uma bola. É sua. Vá, brinque com ela!".

jose-carlos-oliveira