Fonte: Toda crônica. Apresentação e notas de Beatriz Resende; organização de Rachel Valença. Rio de Janeiro, Agir, 2004, vol. II, pp. 482. Publicada, originalmente, na revista [Careta], de 7/01/1922 e, posteriormente, no livro Feiras e mafuás, São Paulo, Brasiliense, 1956, p. 270. 

A agitação política não permitiu que o público ledor tivesse notícia da partida de alguns esforçados paladinos, em demanda de Montevidéu, onde iam sustentar as nossas cores, como se diz nas crônicas esportivas, pelas quais perpassa sempre um sopro épico, como se se tratasse do combate dos três Horácios contra os três Curiácios ou de outros antigos acontecimentos semelhantes.

Os paladinos de que tratei são cinco jogadores de xadrez que, como os que representam a nossa pátria, vão numa incruenta e altissonante prova internacional disputar prêmios a outros jogadores de xadrez, oriundos de várias repúblicas sul-americanas.

Na equipe de enxadristas há três doutores, tal e qual, como no football. Um cidadão que joga uma ou outra coisa, por serem deveras difíceis, matérias a exigirem grande cultivo intelectual, sendo doutor, sabendo o Ribas e o Lobão e tendo meditado sobre as hipercientíficas Alocuções acadêmicas, do doutor Aluísio de Castro, esse cidadão deve por isso mesmo ser melhor jogador do que um outro qualquer que não haja lidado com tão transcendentes assuntos.

O jornal em que li a notícia da partida da turma enxadrista lastimava que o jogo do “cavalo” e da “rainha” não seja mais apreciado entre nós e encontre até obstáculos ao seu desenvolvimento.

Entretanto, alguns apaixonados não esmorecem, continuam a cultivá-lo, não deixando morrer o fogo sagrado – no dizer da folha em questão.

Diz o articulista que esse encontro em Montevidéu vai ser um verdadeiro intercâmbio amistoso e intelectual, entre as nações sul-americanas. Que não seja como os matches de football é o meu desejo.

Tudo hoje é intelectual e o xadrez não podia fazer exceção à regra. O football também o é, apesar de ser jogado com os pés; o atirar de pistola e remar em canoas leves, também.

O que não é intelectual, são as manifestações de arte, de ciência e literatura. Para estas, não há articulista que deite folhetim de lágrimas, lastimando que elas encontrem fortes obstáculos a seu desenvolvimento. Pelo contrário.

Quando eles topam na redação um livro que o seu modesto autor levou, recebem-nos, o livro e o autor, com má vontade, e dizem secamente:

– Está entregue.

Quando o rapazola sai, o grave redator se volta para o companheiro e fala superiormente:

– Que mania têm esses rapazes de fazer livros. Antes fossem para a lavoura.

É que, para gente desse calibre, a grandeza de um país não se mede pelo desenvolvimento das artes, da ciência e das letras. O padrão do seu progresso é o grosseiro football e o xadrez de ociosos ricos ou profissionais.

Além desses índices, há o atirar de garrucha, o remar em botes de cedro, o saltar muito alto, com auxílio de varas, e os rolos nos campos de football.

O Brasil, ao acreditar em semelhante pessoal, ficará célebre no mundo, desde que ganhe campeonatos internacionais dessas futilidades todas.

E, sendo assim, em breve aparecerá um Camões ou um Homero para rimar uma epopeia em louvor desses heróis esforçados, que nada fizeram para o benefício comum, mas que são glórias do Brasil.

lima-barreto