Fonte: Toda crônica. Apresentação e notas de Beatriz Resende; organização de Rachel Valença. Rio de Janeiro, Agir, 2004, vol. I. p.355. Publicada, originalmente, no periódico [A.B.C.], de3/05/1918 e, posteriormente, no livro Bagatelas. Brasiliense, 1956, p.61.
Certas manhãs, quando desço de bonde para o centro da cidade, naquelas manhãs em que, no dizer do poeta, um arcanjo se levanta de dentro de nós; quando desço do subúrbio em que resido há quinze anos, vou vendo, pelo longo caminho de mais de dez quilômetros, as escolas públicas povoadas.
Em algumas, ainda surpreendo as crianças entrando e se espalhando pelos jardins à espera do começo das aulas; em outras, porém, elas já estão abancadas e debruçadas sobre aqueles livros que meus olhos não mais folhearão, nem mesmo para seguir as lições de meus filhos. Brás Cubas não transmitiu a nenhuma criatura o legado da nossa miséria; eu, porém, a transmitiria de bom grado.
Vendo todo dia, ou quase, esse espetáculo curioso e sugestivo da vida da cidade, sempre me hei de lembrar da quantidade das meninas que, anualmente, disputam a entrada na Escola Normal desta cidade; e eu, que estou sempre disposto a troçar as pretensões feministas, fico interessado em achar no meu espírito uma solução que satisfizesse o afã do milheiro dessas candidatas a tal matrícula, procurando com isso aprender para ensinar, o quê? o curso primário, as primeiras letras a meninas e meninos pobres, no que vão gastar a sua mocidade, a sua saúde e fanar a sua beleza. Dolorosa coisa para uma moça...
A obscuridade da missão e a abnegação que ela exige cercam essas moças de um halo de heroísmo, de grandeza, de virtudes que me faz, naquelas manhãs em que sinto o arcanjo dentro da minha alma, cobrir todas elas da mais viva e extremada simpatia. Eu me lembro também da minha primeira década de vida, de meu primeiro colégio público municipal, na Rua do Resende, das suas duas salas de aula, daquelas grandes e pesadas carteiras do tempo e, sobretudo, da minha professora – dona Teresa Pimentel do Amaral – de quem, talvez, se a desgraça, um dia, enfraquecer-me a memória, não me esqueça de todo.
De todos os professores que eu tive, houve cinco que me impressionaram muito; mas é dela que guardo mais forte impressão.
O doutor (assim o tratávamos) Frutuoso da Costa, um deles, era um preto mineiro, que estudara para padre e não chegara a ordenar-se. Tudo nele era desgosto, amargor; e, às vezes, deixávamos de analisar a Seleção, para ouvirmos de sua feia boca histórias polvilhadas dos mais atrozes sarcasmos. Os seus olhos inteligentes luziam debaixo do pince-nez e o seu sorriso de remoque mostrava os seus dentes de marfim de um modo que não me atrevo a qualificar. O seu enterro saiu de uma quase-estalagem.
Um outro foi o senhor Francisco Varela, homem de muito mérito e inteligente, que me ensinou História Geral e do Brasil. Tenho uma notícia de polícia que cortei de um velho Jornal do Comércio de 1878. Desenvolvida com a habilidade e o savoir-faire daqueles tempos, contava como foi preso um sujeito por trazer consigo quatro canivetes. “Explorava-a”, como diz hoje nos jornais, criteriosamente o redator dizendo que “ordinariamente basta que um homem traga consigo uma única arma qualquer para que a polícia ache logo que deve chamá-lo a contas”. Isto era naquele tempo e na corte, pois o professor Chico Varela usava impunemente não sei quantos canivetes, quantos punhais, revólveres; e, um dia, apareceu-nos com uma carabina. Era no tempo da Revolta. Gabava-se, no que tinha muita razão, de ser parente de Fagundes Varela; mas sempre citava a famosa metáfora de Castro Alves, como sendo das mais belas que conhecia: “Qual Prometeu tu me amarraste um dia”...
Era um belo homem e, se ele ler isto, não me leve a mal. Recordações de menino...
Foi ele quem me narrou a lenda dos começos da Guerra de Tróia, que, como sei hoje, é da autoria de um tal Estásinos de Chipre. Parece que é fragmento de um poema deste, conservado não sei em que outro livro antigo. O filho do rei de Troia, Páris, foi chamado a julgar uma contenda entre deusas, Vênus, Minerva e Juno.
Houvera um banquete no céu e a Discórdia, que não havia sido convidada, para vingar-se, atirou um pomo de ouro, com a inscrição – “À mais bela”. Páris, chamado a julgar quem merecia o prêmio, entre as três, hesitou. Minerva prometia-lhe a sabedoria e a coragem; Juno, o poder real e Vênus... a mulher mais bela do mundo.
Aí, ele não teve dúvidas: deu o “pomo” a Vênus. Encontrou-se com Helena, que era mulher do rei Menelau, fugiu com ela; e a promessa de Afrodite foi cumprida. Menelau não quis aceitar esse rapto e declarou guerra com uma porção de outros reis a Troia. Essa história é da mitologia; pois hoje me parece do catecismo. Naqueles dias, ela me encantou e fui da opinião do troiano; atualmente, porém, não sei como julgaria, mas certo não desencadearia uma guerra por tão pouca cousa.
Varela contava tudo isto com uma eloquência cheia de entusiasmo, de transbordante paixão; e, ao me lembrar dele, comparo-o sempre com o doutor Ortiz Monteiro, que foi meu lente, sempre calmo, metódico, não perdendo nunca um minuto para não interromper a exposição de sua geometria descritiva. A sua pontualidade e o seu amor em ensinar a sua disciplina faziam-no uma exceção no nosso meio, onde os professores cuidam pouco nas suas cadeiras, para se ocuparem de todo outro qualquer afazer.
De todos eu queria também falar do senhor Oto de Alencar, mas que posso eu dizer da sua cultura geral e profunda, da natureza tão diferente da sua inteligência da nossa inteligência, em geral? Ele tinha alguma cousa daqueles grandes geômetras franceses que vêm de Descartes, passam por d’Alembert e Condorcet, chegam até nossos dias em Bertrand e Poincaré. Podia tocar em tudo e tudo receberia a marca indelével do seu gênio. Entre nós, há muitos que sabem; mas não são sábios. Oto, sem eiva de pedantismo ou de suficiência presumida, era um gênio universal, em cuja inteligência a total representação científica do mundo tinha lhe dado não só a acelerada ânsia de mais saber, mas também a certeza de que nunca conseguiremos sobrepor ao universo as leis que supomos eternas e infalíveis. A nossa ciência não é nem mesmo uma aproximação; é uma representação do Universo peculiar a nós e que, talvez, não sirva para as formigas ou gafanhotos. Ela não é uma deusa que possa gerar inquisidores de escalpelo e microscópio, pois devemos sempre julgá-la com a cartesiana dúvida permanente. Não podemos oprimir em seu nome.
Foi o homem mais inteligente que conheci e o mais honesto de inteligência.
Mas, de todos, de quem mais me lembro é de minha professora primária, não direi do “abecê”, porque o aprendi em casa, com minha mãe, que me morreu aos sete anos.
É com essas recordações, em torno das quais esvoaçam tantos sonhos mortos e tantas esperanças por realizar, que vejo crepitar esse matutino movimento escolar; e penso nas mil e tantas meninas que todos os anos acodem ao concurso de admissão à Escola Normal.
Tudo têm os sábios da Prefeitura imaginado no intuito de dificultar a entrada. Creio mesmo que já se exigiu Geometria Analítica e Cálculo Diferencial para crianças de doze a quinze anos; mas nenhum deles se lembrou da medida mais simples. Se as moças residentes no Município do Rio de Janeiro mostram de tal forma vontade de aprender, de completar o seu curso primário com um secundário e profissional, o governo só deve e tem a fazer uma cousa: aumentar o número das escolas de quantas houver necessidade.
Dizem, porém, que a municipalidade não tem necessidade de tantas professoras, para admitir cerca de mil candidatas a tais cargos, a despesa, etc. Não há razão para tal objeção, pois o dever de todo o governo é facilitar a instrução dos seus súditos.
Todas as mil que se matriculassem, o prefeito não ficava na obrigação de fazê-las professoras ou adjuntas. Educá-las-ia só e estabelecesse um processo de escolha para sua nomeação, depois que completassem o curso.
As que não fossem escolhidas poderiam procurar o professorado particular e, mesmo como mães, a sua instrução seria utilíssima.
Verdadeiramente, não há estabelecimentos públicos destinados ao ensino secundário às moças. O governo federal não tem nenhum, apesar da Constituição impor-lhe o dever de prover essa espécie de ensino no Distrito. Ele julga, porém, que só são os homens que necessitam dele; e mesmo os rapazes, ele o faz com estabelecimentos fechados, para onde se entra à custa de muitos empenhos.
A despesa que ele tem com os Ginásios e o Colégio Militar, bem empregada, daria para maior número de externatos, de liceus. Além de um internato no Colégio Militar do Rio, tem outro em Barbacena, outro em Porto Alegre, e não sei se projetam mais alguns por aí.
Onde ele não tem obrigação de ministrar o ensino secundário, ministra; mas aqui, onde ele é obrigado, constitucionalmente, deixa milhares de moças a impetrar a benevolência do governo municipal.
A municipalidade do Rio de Janeiro, que rende cerca de quarenta mil contos ou mais, podia ter há muito tempo resolvido esse caso; mas a política que domina a nossa edilidade não é aquela que Bossuet definiu. A nossa tem por fim fazer a vida incômoda e os povos infelizes; e os seus partidos têm por programa um único: não fazer nada de útil.
Diante desse espetáculo de mil e tantas meninas que querem aprender alguma cousa, batem à porta da municipalidade e ela as repele em massa, admiro que os senhores que entendem de instrução pública não digam alguma cousa a respeito.
E creio que não é fato insignificante; e, por mais que fosse e capaz de causar prazer ou dor à mais humilde criatura, não seria demasiado insignificante para não merecer a atenção do filósofo. Creio ser de Bacon essa observação.
O remédio que julgo tão simples pode não sê-lo; mas espero despertar a atenção dos entendidos e serão eles capazes de achar um bem melhor. Ficarei muito contente e tenho esperança que tal se dê.