Fonte: Toda crônica. Apresentação e notas de Beatriz Resende; organização de Rachel Valença. Rio de Janeiro, Agir, 2004, vol. I. p.572. Publicada, originalmente, na revista Atualidade, de 20/07/1919 e, posteriormente, no livro Coisas do reino de Jambon, Brasiliense, 1956, p.39.

Na tarde de 12 do mês corrente, eu li esta notícia em um jornal: “A senhora Domício da Gama dá hoje a sua primeira recepção ao corpo diplomático e às pessoas da sociedade que queiram cumprimentá-la”.

A novidade vinha encimada com um retrato da senhora (traduzimos com propriedade) mistress Domício da Gama, ou melhor — mistress Gama; e não pude conter a minha admiração, lendo tais linhas. Que luxo! Estamos afinal totalmente up-to-date! Nunca se viu isto por aqui; nem no tempo dos ministros, marqueses, condes, etc., da nossa nobreza que d. João VI dizia ser taffetas.

Continuei a ler a notícia e deparei com isto: “A recepção realiza-se no Itamaraty, das quinze às dezessete horas”.

Homessa! Então o senhor Gama não tem casa? Como é que uma mulher (é termo das leis) se serve de um edifício público para dar recepções?

Quem é o ministro? É mister Domício da Gama ou mistress Gama?

A República deu agora para transferir as honrarias dos maridos às respectivas mulheres?

Amanhã, a senhora do senhor Delfim Moreira, quando for dar um passeio a Paquetá, há de exigir salvas de vinte e um tiros, marinheiros nas vergas, tanto dos navios nacionais como dos estrangeiros.

Correndo as coisas assim, as esposas dos oficiais da Polícia, da Guarda Nacional, do Exército e da Armada, terão de representar aos respectivos chefes de estado-maior, aos comandantes de cada uma das corporações designadas, contra os soldados que não lhes fizerem continência na rua e em outros lugares públicos!

Um réu de crime hediondo, em júri de Niterói, por ter sido absolvido, deu vivas à República! Os cacos da velha nobreza imperial que os senhores de Vasconcelos estão a grudar por aí com o cola-tudo devem estar também exultando com essa transformação de costumes da nossa terra.

Agora, há de fato protocolo, etiqueta e os enobrecidos pelo imperador podem se fazer valer com as suas cartas de nobreza em regra. Grande engano, se assim pensarem! A República não quer linhagem, segundo as vetustas regras e preceitos. Ela, de quando em quando, organiza uma e esta nasce agora de Maricá, com o senhor Domício da Gama, de torna-viagem da livre América. Os outros ministros vão pedir a mesma patente...

Há muito tempo veio o senhor Gama; mas, assim mesmo, estranho a sua invenção que os colegas querem imitar.

Travei conhecimento com as suas letras, na Revista Brasileira, de José Veríssimo, em 1895.

Lembro-me até de certas anedotas que ele contava, em certo artigo: “Notas da América” — num dos fascículos da mesma revista, que perdi desgraçadamente. Reproduzo-as com alguma reserva.

Ria-se ele, como autêntico ariano da Bactriana, como sociólogo e historiador que era, de um mulato cubano que, em Paris, fazendo propaganda da independência de seu país, dizia: “Nous autres peuples latins”...

O riso ou o sorriso do Senhor Domício podia bem ser superiormente bactriano; mas seguramente não era lá muito superiormente refletido.

O mulato cubano podia dizer com tanto acerto que ele e os seus eram latinos, com o mesmo fundamento com que os franceses, os espanhóis, os rumaicos, até os italianos dizem. A questão não é de cor, de pigmentação; a questão é de educação e de cultura matriz.

Uma outra anedota que o risonho senhor Domício contava era a de um preto do ganho que, seguindo, na Rua Direita, uns negros americanos, marinheiros de um navio dos Estados Unidos (não era o Alabama?), ia os ouvindo, atento e céptico, falarem inglês. Num momento dado, encontrou um seu comborça e segredou:

— Esses moleques pensa memo que eu acredito que eles fale francês.

Por estas e outras, habituei-me a fazer do senhor Domício uma ideia de homem superior; e, como convinha ao seu arianismo, fiz dele, de algum modo, um mito solar. Napoleão também já foi feito. Não me gabem a invenção. Vamos adiante.

Estava no nascimento e eu tinha que esperar o seu zênite. Um belo dia, porém, dei com um conto seu, “Moloque”, nos últimos números da revista de José Veríssimo.

Não era bem curto e não era também uma fantasia daquelas que apareciam nas revistas nefelibatas do tempo. Era um fragmento, bem-escrito, mas sem relevo próprio, sem vigor pessoal. Não seria uma pintura de homem, quando muito, uma aquarela de moça prendada. Bem! fiz eu de mim para mim. O sol vai atingir ao meio-dia e esperei anos, anos: Domício não deu nada.

O sol radiante tinha tido um ocaso brusco, prematuro, sem a explicação que só ultimamente encontrei.

O que falta no senhor Domício da Gama é força, é vigor de alma, é paixão, é necessidade de amar e de odiar. A sua literatura foi uma coisa assexuada, catitinha, limpinha, sem altos nem baixos, sem um acento forte de um qualquer sentimento pessoal e muito menos geral.

O senhor Domício não tem em si atividade mental bastante poderosa para criar, para inventar, para desdobrar a sua personalidade em escritos bons ou maus, quando quer e quando não quer.

Na mocidade, que é, sempre e em todos, a milagrosa mocidade, um pouco de vaidade e o desejo de possuir títulos que o ajudassem na vida e, mesmo, algum gosto, o que seria injustiça negar-lhe, deram alguma capacidade ativa e criadora à sua inteligência; mas vieram-lhe os anos, as posições, a “sorte” e ela voltou à sua feição espontânea de ser unicamente reflexa.

As anedotas de moço, às vezes, dão muita luz ao caráter dos homens feitos. Sobre o senhor Domício, reproduzo uma que me parece bastante elucidativa da faculdade matriz que guiou a sua vida em todos os aspectos.

Foi Sua Excelência, como pouca gente sabe, aluno da Escola Central, hoje Politécnica, no tempo em que a matemática elementar constituía uma espécie do que no primeiro ano é chamado curso anexo.

O senhor Domício matriculou-se nesse curso e não foi além. Um seu antigo colega me contou que ele explicava o abandono do curso pelo fato de não gostar de “diferências”. Era um jogo de palavras e não sei se dos bons. Ele empregava “diferências” por “diferenças” e aludia ao estudo de cálculo diferencial, que era no ano seguinte.

Essa frase dita em moço explica muito bem o senhor Domício. Na sua falta de relevo, na sua lamentável indigência de atributos próprios e dominantes, ele tem sido um caso eloquente e público de mimetismo.

Os seus escritos trazem não só influência mas imitação de Machado de Assis. Há, entretanto, uma diferença: se os sestros e as esquisitices do velho Machado tinham nascido dele mesmo, do amplo solo de sua alma dorida, as cravinas literárias do senhor Domício haviam sido cultivadas em um pote de janela e regadas com um regador de menina de qualidade. Nasciam murchas.

Depois que lhe embranqueceu o cabelo, tratou o autor dos Contos a meia-tinta de vestir-se à Joaquim Nabuco; e, quando o fizeram embaixador, visou logo o Itamaraty e imitar nele Rio Branco. Chegou lá.

Felizmente, não temos mais essas bobas questões de limites; o senhor Domício há de sentir, por isso, não ser totalmente como o seu epônimo ministerial, para arranjar uma complicação diplomática que ele mesmo desfizesse e recebesse uma ovação desta mulataria, com grande gáudio dele, a mostrar-se orgulhosamente à mistress, como ídolo desta negralhada brasileira que quer ser latina.

Um homem como o senhor Domício da Gama, que é ministro por obra da “valorização do café”, e graças aos Estados Unidos; que volta de lá rico; que, mal chegado, literato raté, é feito logo presidente da Academia de Letras; é um perigo que se deve combater, em nome da nossa tradição nacional, muito oposta à daquele país cheio de más sugestões para os imitativos.

Não tenho vexame nenhum em dizer que, seja aqui, seja no órgão dos trabalhadores em trapiche de café, ou de outra corporação mais humilde, hei de combatê-lo por todos os processos de que dispuser. O desespero, às vezes, faz grandes obras...

Não quero vir a sofrer, no Rio de Janeiro, as humilhações e os vexames que os homens de minha cor sofrem na terra do senhor Wilson, esse cavalheiro andante de auto, bombeiro voluntário que foi apagar o incêndio na casa alheia e deixou a sua a arder.

Seja por que meios for, não há de ser com a minha anuência tácita que o senhor Domício se torne em veículo dos micróbios da cultura americana. Estrebucharei.

O senhor Domício é mimeto, é acomodatício e faz literatura pouco própria, para as sinhás-moças.

Tudo isto não valeria nada, se não tivesse ele a posição que ocupa; e a cobardia moral de todos nós está permitindo que ele vá aos poucos abusando dela e a levar o seu pendor para imitação não se sabe até onde.

A secretaria do Itamarati, desde Rio Branco, é a nossa casa dos espantos; mas não tinha até agora passado a ser ménage dos ministros, em que suas senhoras anunciam publicamente, ostensivamente, como que nos desafiando a todos, receber amigos e amigas em ágapes desta ou daquela ordem. Foi preciso que viesse o doutor Domício para se dar esse espanto maximum, que talvez não seja o maximorum...

Esperemos, pois cada um de nós espera da sua maneira... Nem sempre o camelo deita-se, quando a carga é muita.

lima-barreto