Fonte: Cadeno B, Jornal do Brasil, de 10/03/1971. Publicada, posteriormente, no livro O homem na varanda do Antonio's, Civilização Brasileira, 2004, pp. 207-209.
Voltarei a falar em bares que nos rejeitam e outros que nos recebem em seu generoso seio. Porém antes me façam o favor de anotar uma nova espécie de chato por mim descoberta e classificada. É o Chato Felicidade. Manjam aquele cara que senta na sua mesa sem pedir licença e começa a falar de um assunto que não lhe interessa?
Grave problema, esse. Primeiro o homem chega, te vê sozinho e senta. E se põe a falar. Em seguida ele chega, te encontra acompanhado e fica em outra mesa, fingindo ser capaz de suportar a própria pessoa. (Etimologicamente, chato quer dizer indivíduo que não se dá bem consigo mesmo. Esse desconforto produz um cheiro, e o cheiro arde nas narinas das pessoas sensíveis.) Em certo momento os seus companheiros se retiram e o chato, pum! senta na sua mesa e na sua alma. Com o tempo, irá adquirindo desembaraço suficiente para entrar na roda, mesmo que você no momento esteja discutindo uma delicada questão de amor ou um lance espetacular na Bolsa de Valores.
Contra o Chato Felicidade a única solução é fugir. Se é um coquetel, você pede licença e muda de salão, deixando-o entregue aos incautos. Se é um bar e a sua solidão parece evidente, o jeito é recebê-lo assim:
– Tudo bem? Eu gostaria tanto de bater um papo com você hoje, mas acontece que tenho que ir em casa, pois vou receber daqui a dois minutos um telefonema de John Lennon. Já até mandei vir a nota.
Enquanto o garçom não vem, manda a fatalidade que CF (Chato Felicidade) se agarre com unhas e dentes ao tema por você mesmo lançado. Dirá ele:
– John Lennon? Não sabia que era seu amigo. Aliás, prefiro os Rolling Stones. Acho os Beatles pouco autênticos.
CF adora paixões mesquinhas. Dá opinião sobre coisas que não interessam a ninguém. Diante dele não se pode dizer, após uma ligeira verificação do estado do céu: “Acho que vai chover”. Pois CF imediatamente prova que aquelas nuvens, muito pelo contrário, indicam a permanência do verão. E cuidado com a gafe. Se você quiser levar o assunto para o terreno da galhofa, começando por exemplo a comentar que o nosso Serviço de Meteorologia não dá uma dentro, CF é bem capaz de advertir:
– Já trabalhei lá, isso que você está dizendo é uma injustiça.
– Desculpe – retrucará você, paciente e bem educado. – Sinceramente, não era minha intenção desmerecê-lo. Eu me referia ao Serviço de Meteorologia de Toronto.
Inútil providência! CF baterá na mesma tecla:
– Não adianta fugir da raia, não. Você se referia era mesmo ao nosso Serviço de Meteorologia. Aliás, é um defeito bem brasileiro, esse, de lançar o descrédito sobre as nossas mais sólidas instituições e serviços. Meu amigo, o nosso Serviço de Meteorologia não é melhor nem pior do que qualquer outro.
Meu Deus, e esse garçom que não chega? Vou acabar pedindo outro uísque, e aí então é que não terei descanso!
Isso você pensa enquanto CF continua a falar. A voz é mansa, hipnótica. Não tem meu-pé-me-dói, o negócio é mesmo cair fora enquanto há tempo. Porque se chega mulher, CF ficará calado, olhando para ela. Ela vai beijar você, puxar a cadeira, sentar, cumprimentar discretamente CF, pois nunca o viu mais gordo, pedir uma coca-cola e iniciar uma deliciosa conversinha com você ao pé do ouvido. Abstraído, CF se torna inquieto e até agressivo. Suponhamos que você e a referida senhora resolvam trocar um beijo, o que não tem nada de mais, pois estamos entre adultos independentes. No meio do beijo CF atravessará, primeiro, um pigarro, e depois:
– Como é? Não vai me apresentar?
Apresentação feita, CF prossegue:
– Certos homens se sentem de tal modo inseguros que temem perder a mulher por causa de uma simples apresentação...
CF é, antes de tudo, implacável. Garçom, pelo amor de Deus! Ou trazem a minha conta ou quebro este botequim!
Chato Felicidade, o homem que quando chega os outros se retiram, é assim chamado porque:
Nós nunca o pomos onde nós estamos
E nunca estamos onde nós o pomos...