Fonte: Quandrante 1, Editora do Autor, 1962. Publicada, originalmente no Diário Carioca, de 18/12/1952.
Chamava-se Jacinto, era franzino e manso. Vivia de biscates e do seu talento humorístico, trabalhando com intermitência: encerava uma casa aqui, rachava lenha ali, improvisava uma graça qualquer, e ia vivendo e ganhando o pão de cada dia e a cachaça de cada noite.
Se alguém se referia aos molambos de sua roupa, fechava na resposta toda a sua ciência da vida: “Nasci nu, tou vestido; no dia em que ficar nu, tou no capital’’.
O homem é um animal filósofo. A dele era uma filosofia estoica e temperada de humor: ria-se da própria desgraça, como diz a letra popular.
Nunca ouvimos de Jacinto uma palavra áspera, uma lamúria, nunca respondeu com irritação às crianças que o insultavam, impiedosas, quando passava embriagado. Bêbedo, sorria beatífico e acima de todas as misérias, e falava coisas alegres, às vezes numa língua particular, ininteligível.
Numa das noites frias de Belo Horizonte, Jacinto trocava as pernas, caminhava sem destino, como a folha morta do poeta. Um vento mau o levava. No encontro das avenidas de Contorno e Cristóvão Colombo, os bondes rangem na curva, de madrugada, quando estão apressados. O motorneiro não viu Jacinto; Jacinto não viu o bonde; o anjo dos bêbedos dormia, e não tomou conhecimento do episódio cruel que se armava. Jacinto caiu em cheio perto dos trilhos, braços abertos em cruz, as rodas deceparam-lhe a mão direita.
Pessoas correram do botequim próximo e ajudaram o infeliz a erguer-se do chão. Os olhos de Jacinto ficaram brilhantes, úmidos, mas a lágrima não se formou. No mistério indecifrável da tragédia que acabava de acontecer, Jacinto tomou uma atitude surpreendente e intolerável, andando em roda, procurando no asfalto escuro a mão amputada, implorando aos céus o eterno milagre: “Cadê minha mão, cadê minha mãozinha, minha mãozinha?!”
Mas o céu permaneceu estrelado e duro como um céu pintado.