Periódico
Manchete

Publicada nos livros Homenzinho na ventania, de, 1962, e Alhos e bugalhos, de 2001, com alterações.

A ciência da chateação, segundo certa corrente moderna, apresenta três princípios básicos: 1) O homem nasce com a tendência natural de exercer a chateação; 2) A chateação é uma exorbitância tolerada dos direitos do homem em sociedade; 3) Em determinadas situações, todo homem é capaz de produzir chateação.

Em outras palavras: só a força de vontade diminui em nós a chateação inata e compulsiva; não há leis naturais contra a chateação; o Evangelho legislou com profunda sabedoria ao falar “ama o próximo como a ti mesmo”; a chateação é uma espécie de struggle for life da organização animal mais adiantada; reduzir a nossa capacidade de aborrecer o próximo ao mínimo é resultado do esforço pessoal; chatear, muitas vezes, é um acontecimento exterior à própria vontade de quem chateia.

A ciência pode ainda ser resumida em uma única frase: damos o nome de chato ao indivíduo que produz um tipo de chateação diferente do nosso.

A classificação de todos os tipos está ainda muito incompleta, mas poderemos apresentar algumas figuras bastante caracterizadas, a título de curiosidade.

Há um tipo de gente que não te deixa contar vantagem. Se viste a Kim Novak, ele jantou com ela. Se vais a Paris no ano que vem, ele vai dar a volta ao mundo na próxima semana. Se ganhaste algum dinheiro, ele está milionário. Se lhe contas, pelo contrário, que andas perdendo dinheiro, ele está na mais negra miséria. Se viste uma senhora desmaiar na rua, ele viu uma velha a despencar-se do edifício da Noite. O tipo é denominado NEC PLUS ULTRA.

Há um tipo chamado APERTO LIDRO ou DIABOLICUS. É o sujeito que te fala exatamente as coisas que não desejas ouvir no momento. São terrivelmente intuitivos. Se estás justamente voltando do médico, ele pergunta: “Como é, ficaste bom da úlcera”? O DIABOLICUS te põe a par de todas as conversas nas quais falaram mal de ti.

O tipo amoroso, afetivo, chama-se AB IMO PECTORE (do fundo do peito). Traz um eterno elogio nos lábios. Pergunta pela patroa e pelas crianças com exemplar regularidade. Faz um ar de extrema compaixão se lhe dizes que o Pedrinho anda meio resfriado. Não admite de maneira alguma que lhe pagues o café. Tem a respiração triste e audível e o olhar lânguido.

HABEAS CORPUS é o tipo que, depois de uma hora de conversa, na qual te explica um assunto sem interesse, dá uma folga e se despede. Pois, mal chegas em casa, o telefone toca: é ele que retorna ao assunto pelo fio.

O tipo essencialmente ativo e inquieto apelida-se IN ACTU. Enrola e desenrola sua gravata enquanto fala, segura tua mão, enlaça-te a cintura, sacode teu ombro, dá pancadinhas no teu peito.

O PER JOCUM é também conhecido por BY JOKE, porque se trata de um tipo muito difundido na América do Norte. É o cara que esguicha água nos teus olhos com a flor da lapela, dá choque com a mão, puxa a cadeira quando vais sentar, assusta as pessoas com uma cobra de cortiça etc. É um tipo intenso e difícil.

AURA POPULARES é o tipo especial dos sujeitos levados à política através da popularidade granjeada em outras profissões.

DE GUSTIBUS é o tipo do chato que, depois de exprimir asneiras a respeito de arte, cita exatamente o provérbio: “De gustibus et coloribus non disputandum”.

O camarada que diz segredos aos ouvidos de todo mundo, pedindo discrição e alegando fonte secreta e fidedigna, é chamado INTER NOS ou AQUI PRA NÓS.

AD OSTENTATIONEM é o sujeito que diz: “Por que não largas esse teu emprego e fazes como eu? Só no mês passado ganhei 450 mil cruzeiros sem fazer força”! Há inúmeras variantes.

O tipo inquisitorial se classifica como IN SOLIDO. São os que fazem perguntas assim: “Quanto achas que custa um carregamento de tomates de caminhão de Friburgo até Niterói”? Se respondes que não tens a mínima ideia, ele te fixa implacavelmente nos olhos: “Podes fazer um cálculo”. Não te deixa enquanto não respondes.

INTELLIGENTI PAUCA é o tipo que não fornece dados suficientes à compreensão daquilo que dizem. Tipo de penosa dialogação. Morou?

Os formalistas, os que se exprimem através de frases feitas, são chamados IPSIS LITTERIS. De polidez enervante e um convencionalismo verbal desesperador. Não usam galicismos e palavras plebeias. Empregam sistematicamente os sinônimos incomuns das palavras usuais. Nunca dizem “recebi sua carta”, mas “chegou a mim a sua missiva”.

AD. USUM é o tipo das pessoas que, ao visitar um amigo, dizem logo: “Que apartamento simpático”! Para eles, o menino “já está um homem” e a menina “já está uma moça”. Ao contrário dos IPSIS LITTERIS, convencionais da forma, são os convencionais do conteúdo.

EX PROFESSO é o tipo que te proíbe qualquer palpite sobre um determinado assunto porque ele conhece isso de dentro para fora.

O NÃO-ME-TOQUES latiniza-se NOLI ME TANGERE. É a mulher que passa com o chamado decote atrevido e, quando, cedendo à curiosidade natural da espécie, arriscamos um olho, ela faz uma cara de vilipendiada. É perigosa. Incita o marido a brigar.

Chama-se QUALIS PATER a chateação que se repete de pai para filho.

SUI GENERIS é qualquer tipo inclassificável.

Por fim, dá-se o nome de POST MORTEM ao chato de qualquer tipo que tenha o hábito de baixar em sessões espíritas.

paulo-mendes-campos
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