Fonte: Caderno B, coluna "O homem e a fábula", Jornal do Brasil, de 2/04/1960.
Ligava-nos uma amizade formal. Em coquetéis mundanos ou durante aberturas elegantes do Museu de Arte Moderna, eu trocava algumas palavras com uma jovem senhora perfeitamente adequada ao ambiente: pequena, porém esbelta, muito bem envolvida em fazendas coloridas, coroado por um coque castanho o seu rosto de traços firmes. Uma particularidade, sem quebrar a harmonia dessa figura com a frívola alegria reinante, servia para individualizá-la em meio a tantas outras igualmente adequadas até no perfume (a escolher: Ma Griffe, Bandit, Arpège, Shocking…). E sua voz que possuía um timbre resplandecente. Não há outra maneira de descrevê-la: uma voz grave clara, sem surdinas, que faz vibrar ao telefone.
Nada mais.
Lygia Clark não me parecia, por conseguinte, nada mais do que uma jovem pintora de talento que, precisamente, tendo acabado de voltar de Paris, onde fora aluna de Léger, expunha no Ministério da Educação alguns quadros a óleo muito bem estruturados e que representavam escadas.
Depois quebrou a moldura. Deixou de pintar figuras. Passou a figurar em primeiro plano no movimento de vanguarda preconizado, orientado e defendido bravamente por Mário Pedrosa.
Nada mais.
Lygia Clark estava perfeitamente adequada.
Mas ela começou a alvejar seus quadros com essas pistolas que se usam para pintar automóveis. Seu atelier, no fundo de um confortável apartamento na av. Prado Jr, passou a ser um lugar onde eu gostava de ir porque um perfume que me agrada é o de tinta de automóvel. Evidentemente suas pesquisas me interessavam; mas eu não teria tempo para nada se frequentasse todos os artistas cujas pesquisas me parecem interessantes – e se, ainda por cima, resolvesse escrever sobre cada um.
Houve, no entanto, uma tarde em que ela conquistou o direito à admiração que reservo às pessoas especiais. Apareci no atelier, encontrando-a em pleno trabalho, e ela me disse, depois de providenciar que me servissem um gin com água tônica: “fique à vontade enquanto termino esse serviço”.
Sobre uma grande mesa havia placas triangulares de madeira. Sobre um tamborete um quadro dessa madeira fina cujo nome esqueci e um serrote pousado sobre o quadro. Estando o visitante acomodado em um canto da sala, a artista retomou seu trabalho. Em primeiro lugar, empunhar o serrote. Firmou então um joelho numa ponta do quadro, a mão esquerda na outra ponta, e começou a serrar uma nova placa triangular. O esforço revelou um pequeno mas rígido músculo no antebraço que eu podia ver de onde estava, mas foi justamente nesse momento, tão diferente dos outros, que ela se entregava a uma tarefa teoricamente própria de homens, foi nesse momento em que ela me revelou sua feminilidade: Lygia estava cansada, com as feições abatidas, o coque se desfazendo em mechas rebeldes. Sua blusa branca não tinha mangas e seu short preto, recordando a palheta sem a qual os ingênuos não podem visualizar um pintor, ostentava manchas de tintas amarela, azul e vermelha. Ela parou de serrar para tirar do olho uma mecha de cabelo castanho, suspirando então no ar salpicado de partículas de madeira, e nunca vi uma pessoa tão frágil, uma mulher de tal modo desamparada, mercê do esforço que a si mesma se impôs, o que parecia, aliás, dar razão aos que pensam que determinados serviços não são para mulheres.
Então ela se entrega fervorosamente ao seu trabalho! Passei, por conseguinte, a respeitá-la como algo mais do que uma jovem artista de talento.
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Outra qualidade que me aproxima dela: – Para Lygia Clark não existe o aborrecimento. Não existe a náusea. Ela não diz: “a vida não presta”. Prefere dizer: “estou deprimida”.
A angústia é uma enfermidade, uma enxaqueca moral. Acontece que se abate sobre nós a qualquer momento, sem razão, uma lucidez negativa: existir, existir! Existir sempre. Existir até morrer. Estar no mundo se nos afigura, então, um castigo intolerável. Será esse o momento existencial por excelência?
Lygia Clark diz: “estou deprimida”.
E afinal consegue estabelecer um mínimo de conexão entre as suas preocupações atuais e qualquer obscura dificuldade infantil. A angústia, no plano moral, tem o mesmo valor que a dor física: significa que alguma coisa não anda bem. É uma advertência. Essa fumaça nos olhos, esse enjoo são o sinal de que um homem está aprisionado em sua própria biografia. É o passado que faz o espírito inclinar-se para a esfera do vômito.
Seguramente somos uma geração que não despreza a psicanálise.
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Lygia Clark acredita na felicidade. Por felicidade, ela entende aquela plenitude para qual encontrou um nome particularmente feliz: “vazio-pleno”. Vida. A existência é uma fonte perpétua de sofrimento. A existência inclui o passado e o futuro. A melancolia e o medo. Porém a vida em sua expressão mais requintada recupera sua plenitude elementar, muda, vazia, parada, embora em movimento.
A imitação da vida, quer dizer, a construção de máquinas que imitam a vida (quer dizer, a construção do sorriso de Gioconda sem Gioconda) eis a tarefa a que se entrega atualmente nossa amiga. Paralelamente à sua experiência estética desenvolveu-se uma experiência religiosa cuja manifestação absoluta são esses ‘bichos’ que você enfrenta, no primeiro instante, com cautela – pois que é assim que uma pessoa se aproxima de um animal desconhecido, e não estamos, aqui, fazendo metáforas – em seguida você articula expectante e, finalmente articulado, o animal, na sua primeira posição, você e ele se contemplam e vagarosamente se compreendem numa esfera em que, pela primeira vez, creio eu, um objeto se reduz à sua condição de objeto e um homem percebe com sua carne que se encontra vivo no mundo, cercado de objetos. Homem e objeto durando no tempo e entretendo perpetuamente uma correspondência silenciosa e vigilante.
BILHETE DO EDITOR:
Essa observações de José Carlos de Oliveira devem ser consideradas como pontos de vista de ordem estritamente pessoal e não correspondem, de maneira alguma, aos princípios estéticos defendidos pelo SDJB, para qual as peças de Lygia Clark superam a condição de objeto, para se constituírem num exemplo, num padrão categórico de não-objeto.