Fonte: Caderno B, Jornal do Brasil, de 13/09/1961.

Ele acordou às 11 horas da manhã. Dormira um sono pesado e desagradável. Desamparado naquela cama e naquele mundo, pensava agora que seu único desejo era continuar dormindo. Queria estar para sempre mergulhado naquele sono pesado e desagradável. Porém, aconteceu uma coisa que não esperava: — as janelas batiam, o quarto estava suspenso na claridade, o vento gemia lá fora uma canção que dizia assim: “Acordai, dorminhocos. Vinde, flores. Erguei-vos, ondas do mar. Árvores, agitai vossos cabelos. A primavera está chegando!”.

E, então, ele pensou que também precisava florir. Ergueu-se: estava zonzo. Tinha a impressão de ter dormido muitos anos. Pensou: “Obrigado, vento!”. Para esquecer um grande amor, ele vivera um sono longo, bebendo sem parar e andando sem destino e querendo morrer. Porém, nessa manhã inesperada, a natureza despertara, espreguiçara-se num estalido de folhas e explodira luminosa e colorida. Também o coração dilacerado parecia pulsar de outra maneira. Ele pensou no seu grande amor e sorriu. Era ainda jovem; podia começar tudo outra vez. Saiu, então correndo para a rua, disposto a usufruir a manhã. E seu coração cantava diante de cada acontecimento:

“Mar, você hoje está muito agitado. Mas as suas ondas são pequenas; são marolas; milhares de pequenas ondas brancas que se quebram sem escândalo na areia que se levanta e rodopia. Você, hoje, tem um navio branco que vai embora; e uma ilha que vejo com nitidez especial na luz precisa desta manhã”.

“Meninas ao vento, que vos inclinais alegres, a caminho da escola, protegendo as saias que se erguem acima dos joelhos! Assim como as rosas explodem nos canteiros, ouço a macia eclosão dos vossos pequenos seios. Esta é para vós a última festa infantil: se vossos risos ainda parecem de crianças, que aproveitem o instante sem outro pensamento que não o de aproveitá-lo, vossas maneiras são graciosas, porém, calculadas: bem sentimos a curiosidade com que procurais nos nossos olhos o reflexo do prazer que estás sentindo. Meninas, ou melhor, mocinhas, este é um raro privilégio: — tornar-se mulher ao mesmo tempo que a natureza”.

“Muito obrigado, vento. As folhas dançam nas calçadas. Todo mundo está alegre. No Jardim Botânico houve uma devastação. As crianças riem, os adultos olham pelas janelas dos lotações, as mães de família debruçam-se às janelas para ver o tempo que está fazendo. Esquecemos as durezas da vida. Neste momento é impossível preocupar-se: respiramos um ar indócil que nos embriaga e nos convida a fazer da existência uma festa sem fim. No fundo dos nossos corações agita-se uma vontade imensa de cantar, dançar, ser feliz. Viva o mar! Viva o céu! Viva as amendoeiras que giram num rumor de candelabros! Não tendo a quem agradecer, porque o tempo é gratuito, agradeço a ti: obrigado, vento”

Depois de falar assim às coisas e pessoas que encontrou pelas ruas, ele voltou a pensar no seu grande amor. E, então, com os cabelos alvoroçados e os olhos ardentes, admitiu que também no coração do homem devia repetir-se aquele eterno ciclo: primavera, inverno, primavera. Estava nascendo outra vez: “Viva a vida!”, disse ele.

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