Fonte: Um pé de milho, 3 ed., Sabiá, 1970, pp. 144-147.

Um amigo tenho eu dado a amores. Raça tonta de gente é essa, e com frequência infeliz; mas tem suas coisas engraçadas. Era de ver a seriedade com que me fazia esse amigo, em um grande domingo de sol, a confissão de que sua alma estava às escuras; e a descoberta que acabara de fazer a respeito do ciclismo.

Havíamos pedalado desde Copacabana até perto da praia da Gávea. E quando voltamos pela avenida Niemeyer e paramos para sorver um chope naquele bar onde funciona uma maternidade, no Leblon, ele parece que se sentia melhor, e disse:

— No estado em que me acho, sofrendo essa dor, não há como a bicicleta.

O estado em que se achava, e que dor era a sua, não vos direi, porque, a mim, as coisas, amo dizê-las pelo nome certo. Isso, no jornal, seria feio. Digamos, de um modo vago, que estava infeliz por obra de amores — talvez mal correspondidos, provavelmente apenas mal entrosados ou, o que é ainda mais provável, em defasagem, horrível palavra de origem estatística mas que me parece muito adequada para as lides do amor, onde com frequência a fase em que um amante ainda não coincide com aquela em que anda o outro, fato aliás comum na vida humana, a que Oswald de Andrade chamou, num de seus trocadilhos mais melancólicos, a “procissão do desencontro”. Amores desencontrados — ponhamos isso. O fato é que o moço sofria, e do fundo desse sofrimento abençoava sua bicicleta.

— Porque repare que nesse estado um sujeito sair a pé pela rua é mortificante. Anda-se às tontas, anda-se muito, e a certa altura o sujeito está cansado e irritado e nota que não foi a parte alguma. Os veículos de transporte coletivo acrescentam irritação à tristeza. O táxi é impossível, porque a primeira pergunta que faz o chofer é para onde se vai — uma pergunta que envolve um problema de destino, exatamente num momento em que o homem não sabe aonde ir. Carro particular é para quem tem; e mesmo para esse não se recomenda, porque um passeio nessas condições redunda em multas da Inspetoria, com perigo de atropelamento, desastres, etc. O golpe é andar de bicicleta.

Meu amigo falava devagar, como se estivesse pedalando as palavras:

— De bicicleta o sujeito vai pensando no seu caso, e ao mesmo tempo vai castigando um pouco o corpo, fazendo esforço, com o sol no crânio. Além disso não pode dar inteira atenção à sua própria alma, porque deve prestar alguma ao trânsito. E repare que o camarada de bicicleta e roupa de banho pode ir a qualquer parte sem estar indo ali. Está de passagem; passa por ali, o que é uma coisa sem compromisso. Você vai dizer que tudo isso é sutileza ou bobagem minha. Mas estou falando por experiência. A bicicleta é a forma menos intolerável da gente se locomover quando está nestas condições.

Obtemperei que, pela sua teoria, seria também aconselhável ao apaixonado em transe andar sempre de guarda-chuva. Um guarda-chuva, expliquei, sempre distrai um pouco, e o trabalho que uma pessoa tem para não esquecer o guarda-chuva já é um trabalho sadio. Além disso abrir o guarda-chuva, fechá-lo, esgrimi-lo, amarrá-lo, abotoá-lo, mudá-lo de mão, colocá-lo em volta do pescoço, segurá-lo pelo meio, tudo isso são diversões, ainda que modestas, ponderáveis.

Ao contrário do que eu esperava, ele não se zangou por eu mofar assim de sua teoria. Pelo contrário, admitiu que guarda-chuva também não é má ideia — o que mostra a fraqueza mental das pessoas em seu estado.

— É, guarda-chuva é uma boa ideia. Mas sempre que possível, bicicleta.

E continuou a me falar com entusiasmo de sua teoria e prática da bicicleta. Para aborrecê-lo um pouco, lembrei-lhe que bicicleta é um veículo pouco usado. Como ele é um homem habitualmente muito preocupado com a questão social, e até tido como extremista da esquerda, fiz sentir que o proletariado (com exceção dos entregadores de tinturarias e casas comerciais e dos mensageiros) pouco anda de bicicleta e quase nunca passeia de bicicleta. Talvez ao proletário apaixonado infeliz — sugeri — conviesse mais o carrinho de mão, que também distrai muito, principalmente quando carregado.

Julguei que a ideia fosse revoltá-lo, mas meu amigo estava definitivamente idiota e aéreo:

— É, carrinho de mão; pode ser...

Achei melhor promover a retirada, e fomos pedalar. Pois se a bicicleta faz bem a um homem naquele estado, melhor faz ao seu amigo, que assim se poupa muita conversa triste e muita teoria vã.

rubem-braga