Fonte: Alterosa, 1963.
Falávamos de aspectos desconhecidos e surpreendentes na vida de muita gente. Por exemplo: insuspeitadas profissões. A lista acabou ficando imensa, com a competitiva colaboração de todos que participavam da conversa. Foi assim que fiquei sabendo (e conto agora) que o médico Noel Nutels, sanitarista das selvas, já foi cantor e bailarino. O pintor Raymundo Nogueira, recentemente falecido, foi gari da Prefeitura. Ataulfo Alves foi prático de farmácia, como o romancista Erico Verissimo. Dorival Caymmi foi vendedor de bebida até que um dia bebeu o mostruário. Darwin Brandão, jornalista, foi “propagandista científico” em Sergipe e formou-se em farmácia, como o poeta Carlos Drummond de Andrade. O poeta Drummond, aliás, foi, como o ex-presidente Jânio Quadros, professor de geografia. O jornalista esportivo e homem de TV Armando Nogueira, além de aviador, até um grave desastre, foi também mecânico da Singer — quem jamais suspeitaria? E era um craque na adaptação do pedal das máquinas de costura. Antônio Maria, colunista, foi locutor esportivo e locutor, no Maranhão, foi também o poeta Ferreira Gullar, àquele tempo conhecido como José Ribamar Ferreira. Recentemente, o cronista José Carlos Oliveira, do Jornal do Brasil, contou a sua experiência, na infância, como cambista de jogo do bicho. O poeta Geir Campos foi piloto da Marinha Mercante e Gasparino Damata foi embarcadiço. O Embaixador Raymundo Sousa Dantas foi tipógrafo, como aliás, contou num livrinho que escreveu por minha sugestão. Prático de farmácia foi também o embaixador Rubem Braga. Geraldo Carneiro, como Benedito Valladares, foi dentista. Aeromoço da Panair, por concurso, foi o hoje diplomata, também por concurso, Rogério Corção. Schmidt, poeta e articulista, foi, como é sabido, caixeiro da Casa Barbosa Freitas, vendedor de cachaça e empregado de serraria, além de livreiro e editor. O romancista Herberto Salles foi coletor em Andaraí, na Bahia, onde Herón de Alencar, professor universitário de Literatura e colaborador de Arrais, foi médico obstetra. Miguel Arrais, aliás, foi economista do IAA. O locutor Luis Jatobá é médico e exerceu a medicina como ortopedista. Lamartine Babo, como Juscelino e Alkmin, foi telegrafista. Murilo Mendes e o falecido Santa Rosa foram bancários, enquanto que Cecília Meireles foi desenhista e como tal brilhou na revista Festa. Desenhista também foi Cornélio Penna. Vinicius de Moraes, além de funcionário do IAPB, foi escrevente de cartório — e juramentado! Silvio Caldas foi mecânico de automóvel. Se Ibrahim Sued foi fotógrafo (e saímos juntos para reportagens, quando eu trabalhava em O Globo). Augusto Rodrigues foi ajudante de fotógrafo. Francisco de Assis Barbosa, biógrafo de JK e ensaísta, foi delegado de polícia. Jacintho de Thormes (Maneco Muller) foi balconista de casa de artigos para homens. Sérgio Porto (Stanislaw Ponte Preta) até hoje é bancário, do Banco do Brasil. O crítico Mário Cabral foi pianista profissional e, nessa qualidade, acompanhou Carmen Miranda. Aníbal Machado foi promotor público e Nelson Rodrigues, que começou a vida aos 13 anos como repórter de polícia, foi diretor da revista infantil O Guri, Olympio Guilherme foi ator e chegou a trabalhar em Hollywood, num filme da Fox, chamado Fome. Brizola, todo mundo sabe, foi ascensorista, assim como Getúlio, prevendo talvez esta era sargental, foi 2º Sargento.
A lista, como está se vendo, é inesgotável. Não quero encerrá-la, porém, sem fazer algumas revelações inéditas a respeito do início de vida de alguns amigos mineiros. Fernando Sabino, adolescente agitadíssimo, foi, em Belo Horizonte, vendedor de relógio elétrico de parede. Foi também professor de Taquigrafia. Suas habilidades de taquígrafo lhe deram um prêmio de rapidez. E foi ainda fugaz professor de ginásio, no colégio de que era diretor meu pai — o Instituto Padre Machado. A disciplina nas aulas de Fernando era péssima, inteiramente oposta à respeitosa atenção com que hoje o ouvem os ginasianos e universitários para os quais pronuncia suas periódicas conferências. Outra revelação: Hélio Pellegrino foi propagandista de medicamentos e abandonou o emprego de estalo, num dia em que atirou fora a pasta com as amostras, para seguir com Fernando e comigo para a Pampulha, onde nos esperava uma cervejinha gelada. Hélio foi também representante da fábrica de casquinhas de sorvete Martorano. Quanto a Paulo Mendes Campos, é uma enciclopédia juvenil de indecisões profissionais. Terminamos o ginásio no mesmo ano, 1938. Paulo seguiu para a Escola de Cadetes de Porto Alegre, atraído pela carreira das armas! Depois de um ano, estudou veterinária em Belo Horizonte, onde também fez o Curso Complementar de Odontologia. Depois estudou direito até o 3º ano. Enquanto estudava, foi pagador e fiscal do depósito de material da firma construtora Campos Gontijo. Vindo para o Rio, Paulo trabalhou na UDN, a convite de Edgard da Matta Machado. Depois, foi fiscal de obras do IPASE e (pasmem) secretário particular de Carlos Lacerda. Assim como João Etienne Filho, este com regularidade, foi secretário de Alceu Amoroso Lima. E Etienne é, como se sabe, técnico de basquete. Autran Dourado foi vendedor de tecido para cortinas e taquígrafo, como Fernando Sabino, e integrou, por concurso, a Taquigrafia da Assembleia Estadual. Aliás, como taquígrafo, é que o romancista Autran começou a trabalhar com o presidente JK. Taquigrafava as audiências com os parlamentares, até que um dia um senador do PSD protestou junto ao presidente: “Não gosto desse rapaz com cara de seminarista que fica aí do lado anotando tudo que a gente diz”!
A indecisão profissional, na juventude, é muito comum entre escritores e artistas de todo o mundo. No Brasil, porém, ela assume aspectos pitorescos e gritantes, o que é também uma ilustração do nosso subdesenvolvido caos nacional. No fundo, porque escrever não constitui ainda uma profissão. Não foi outro o motivo que levou Oswald de Andrade a intitular as suas memórias como sendo de “um homem sem profissão”. Oswald, aliás, foi corretor de imóveis e vendedor de lotes, em São Paulo. E há escritores que transitam por quase todos os ofícios, como é o caso de Osvaldo Alves, que foi caixeiro de armazém, garimpeiro, garçom, boiadeiro, bedel, ferroviário, vendedor de loteria, etc. Hoje, é publicitário e só tem um sonho: ser fazendeiro em Minas. Vá esperando, sentado, pela Reforma Agrária... O que é estranho é que Osvaldo Alves não tenha se perpetuado como funcionário público, uma vez que foi inspetor federal de ensino. Porque funcionários públicos somos quase todos.
Eu, por exemplo, bacharel em direito como quase todo mundo, acabei procurador do Estado da Guanabara e alimento a esperança secreta de publicar um trabalhinho de 500 páginas sobre o Mandado de Segurança.
Um dos poucos que escapou das letras jurídicas foi o deputado José Aparecido. Não teve paciência para esperar pelo canudo de bacharel. A falta de paciência deu-lhe a sua famosa úlcera de estômago e a úlcera, ainda recentemente, levou-o ao Hospital dos Servidores do Estado. Internado. Aparecido ficou sujeito a um duro regime alimentar: uma xicrinha de leite de hora em hora. Vinte e quatro horas depois, o exame clínico constatou que a úlcera continuava aberta, indiferente à dieta rigorosa. Uma rápida pesquisa revelou, porém, que o nobre deputado tinha almoçado e jantado fartamente, graças ao estratagema de solicitar a comida do acompanhante, que ele próprio, faminto, tratou de devorar. Concomitantemente, Aparecido fumava, falava ao telefone, se agitava e recebia visitas até de madrugada. Ao fim do quarto dia, o seu médico Aluísio Salles, diretor do HSE, convocou os médicos assistentes e a conclusão se impôs: o doente não melhora e o hospital tem piorado muito! Diante disso, o nobre deputado teve alta, isto é, foi expulso do hospital, o que não deixa de ser um subsídio valioso para o também nobre deputado Amaral Neto examinar com atenção.
Cometi inexplicável equívoco, aqui mesmo em Alterosa, quando escrevi, no mês passado, que Tristão de Athayde não dirige automóvel. Dirige sim, e bem. O equívoco é inexplicável porque eu mesmo já cruzei mais de uma vez com ele à direção de seu carro. E guardo uma excelente fotografia, feita por Armando Nogueira, de um flagrante do mestre rindo o seu riso claro num posto de gasolina em que ambos nos encontramos, para abastecer os nossos carros. Como é que pude me enganar assim? Outro equívoco, este incomprovado, mas que indignou Fernando Sabino, refere-se a uma prioridade pioneira. Escrevi que não sou do tempo em que só o dr. Borges da Costa tinha automóvel em Belo Horizonte. Fernando me garantiu que seu pai, Domingos Sabino, é que foi, na verdade, o primeiro cidadão de Belo Horizonte a comprar um carro, no início do século. Retifico, então, mas admito ainda a controvérsia em torno do fato e da precedência.
Andei escrevendo uma novela sobre o pecado capital da avareza, que aparecerá num livro a ser editado pela Civilização Brasileira, ainda este ano. Minha história, sem segunda intenção, passa-se em Minas, numa cidade imaginária. A propósito, conversei muito sobre nossos hábitos de poupança (não confundir com avareza). Eu próprio, analisando a sobriedade literária de nossos escritores, disse certa vez que o mineiro é econômico por natureza: não desperdiça cruzeiros, nem palavras. Carlos Drummond de Andrade, em conversa, refutou a tese (injuriosa) de nosso pão-durismo. Diz o poeta que nós mineiros fazemos o nosso pé-de-meia por uma questão de delicadeza — não gostamos de incomodar os outros. Lembrei-me então de uma velha parenta minha, que juntou ao longo de sua longa vida uns tantos caraminguás, para o caso de alguma emergência. Só gastaria o seu rico dinheirinho se tivesse necessidade é o que ela dizia. A pobre senhora, já idosa, contraiu aquela doença cujo nome não se pronuncia. Pouco antes de morrer, na última lona, recusava-se a lançar mão de suas modestas economias, porque estas — continuava sustentando — eram só para um caso de necessidade. E morreu com o pecúlio mais intocável do que a Petrobrás, na santa paz do Senhor. Por essa e por outras é que o Brasil inteiro espera que venha de Minas a salvação de suas finanças.
No mais, é como diz Benedito Valladares: para mineiro, conversa de mais de dois é comício.