Fonte: Vento vadio: as crônicas de Antônio Maria. Pesquisa, organização e introdução de Guilherme Tauil,Todavia, 2021, pp.201-202. Publicada, originalmente, em O Jornal, de 28/09/1963.
Não sei, leitor, se você é como eu: gosta de certos prazeres condenados. E a mim não custa esta confissão, porque não tenho nome ou apelido a zelar. Gosto, por exemplo, das delícias de um resfriado.
Ganhei um e o venho cultivando desde o último sábado. Saio do banho morno para a frieza. Do calor dos estúdios de televisão para a ventania da praia. Durmo com a refrigeração ligada ao máximo. Faço, enfim, o que posso para mantê-lo. O que mais me prende aos resfriados é a burrice que eles me dão. Uma burrice, de certo modo, geral, mas carinhosamente centralizada nos ossos da face: os nasais, os palatinos, os lacrimais e os cartuchos. O máximo de burrice no menor espaço de tempo possível. Numa área que eu poderia pegar com uma mão. Então, para render esse torpor, encho as narinas de Vick VapoRub, uma vaselina que me aumenta todas as mucosas e recende, intensamente. Falo e sinto que minha voz está mal dublada. Telefonam-me e quando estranham o meu falar, dá-me imenso prazer em me comunicar, suspiroso:
— Ah, estou resfriadíssimo desde sábado!
E as pessoas me dizem de lá:
— Faz o seguinte: tome um chá de limão, bem quente, deite-se e agasalhe-se.
— Vou fazer isso. Vou fazer. Foi bem lembrado.
E não irei fazer nada, porque o que eu quero é o resfriado. Passo uma vida sem resfriar-me, quando vem um, iria espantá-lo com chás e cuidados? Tá louco?
Quando disse que sentia minha voz mal dublada, me referi a uma das mais encantadoras particularidades dos meus resfriados. Passo a trocar os emes por bês anasalados e os enes por eles, ainda mais anasalados. Isto é: falo “bambãe” e “lunca”.
E cá estou, prazerosamente, resfriado. O quarto cheira às cânforas contidas no Vick VapoRub. As pessoas me telefonam e, fingindo piedade, me dizem:
— Você precisa tratar disso.
As mais modernas, menores de 30 anos:
— Por que não toma Tetrex?
— Bem lembrado. Bem lembrado… — respondo a todos, com uma hipocrisia ainda maior que a deles. Dentro e fora de mim, estou feliz porque estou resfriado. Cubro-me de jornais e revistas. Leio-os, sem parar. Depois levanto, vou à máquina e bato um pouquinho. A empregada, que é portuguesa, olha-me com olhos compadecidos. Os portugueses se sensibilizam muito face aos resfriados.
Lá para as tantas, levanto-me, tomo banho, visto-me e vou à vida. Os outros têm automóveis de luxo, bens imobiliários, tudo. Eu tenho o meu resfriado. Di Cavalcanti, por exemplo, está em Paris. Enlouqueceria se fosse pensar como e quando poderei ir, também. Mas não posso me queixar. Tenho um resfriado… E não quero muito mais que isto.