Fonte: Vento vadio: as crônicas de Antônio Maria. Pesquisa, organização e introdução de Guilherme Tauil,Todavia, 2021, pp.238-239. Publicada, originalmente, em O Jornal, de 30/08/1962.

Ouça a crônica de Antônio Maria na voz do escritor Guilherme Tauil.

Acordo cedo e abro a janela para o dia bonito. Tenho que sair, ir ver um eletricista que conserta faróis de automóveis. Mas preferia ficar aqui, vendo o dia. Daqui, conversar com Deus e agradecer o que tenho. Vou bem, obrigado. Sou imensamente grato ao Senhor, assim como estou, em odor de santidade, sem beber, sem jogar, mas com esse cigarrinho na mão. Ah, não me tire este cigarrinho…

Falar nisso, Deus, ontem li um artigo contra o fumo e me deu vontade de escrever outro, a favor. Será verdade tudo aquilo que dizem do fumo? Gostaria de escrever um artigo, desagravando o fumo.  Escreveria, com gratidão, pela companhia que me fez, quando eu era só. Passava dias inteiros a conversar com esses cigarros negros, fortes, de machíssimo aroma… tão amigos. Francamente, não acredito que doença alguma, e muito menos aquela cujo nome é triste de escrever, seja causada pelo cigarro. O cigarro é um companheiro. E companheiro não trai.

Dia bonito e eu fumando, na janela. As crianças do orfanato já se levantaram e fazem barulho com as suas chinelinhas. Daqui a pouco, irão rezar as aves-marias. Rezarei com elas, pedindo a Deus que não retire nada do que me deu, pois preciso desta serenidade, deste estado de graça e da distância em que me botei, para viver, cada vez mais intensamente, o meu amor e o meu resto de vida. Darei bom-dia a esse dia tão bonito e ao Deus que faz os dias bonitos. Bom-dia aos passarinhos, cujas vozes se misturam à dos órfãos, que ja rezam suas ave-marias. Há uma coisa comum em mim, nos órfãos e nos passarinhos. Talvez sejam os nossos olhares que se pareçam. Mendigamente se pareçam. Deixa de ser vagabundo, Antônio.

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