Fonte:  Caderno B, Jornal do Brasil, de 22/06/1969.

Dissimulado feito Capitu, que eu saiba, é o Armando Nogueira. Sua paixão pelo futebol esconde o seu amor, este sim essencial, pela literatura. O futebol é a sua amante, mulher de todos e de ninguém, mas a literatura nada lhe nega, fiel em todos os instantes, suportando mesmo o modo que ele tem de dar a impressão de não gostar dela. Puro fingimento, é claro. Para Armando Nogueira, uma frase bem formulada é fonte de alegria severa; nisto ele se compara com Didi sorrindo, quase imperceptivelmente, depois de esticar um passe, que vale meio gol.

Seu livro Na grande área, publicado agora nas Edições Bloch, nada tem a ver com uma coletânea de crônicas colhidas ao acaso nas páginas de um jornal. É, isto sim, um ensaio brilhante sobre o futebol, uma constante interrogação da bola onde quer que se defronte com um pé: no quintal onde três meninas brincam, na rua onde os garotos jogam pelada, nos livros onde o seu fascínio ficou depositado (de Homero a Albert Camus, de Paulo Mendes Campos a William Cowper...), nos grandes e pequenos estádios. Penso sem heresia naquele mistério maior que condenou um Nietzsche ou um Heidegger a uma dispersão marcada pela fatalidade unificadora de um só pensamento e uma só emoção: Armando Nogueira não brinca em serviço, a bola é um pretexto como outro qualquer para falar com rigor nas coisas que interessam, o amor, o ódio, a injustiça, a moral. E cada dia reencontra a si mesmo naquele gesto de perder-se. O acontecimento conduz seu espírito a uma angústia primeira e essa angústia se libera na contemplação do acontecimento. Como em todo verdadeiro escritor, seu coração tem a peculiaridade de um bumerangue: você joga longe e ele volta ao ponto de partida. É um voo condenado ao fracasso, mas enquanto voa a vitória nos sorri. (Falei em bumerangue: quando a bola quica, a contradição é a mesma). Seu livro contém o tempo em que foi escrito (tempo igual à emoção), e isso significa competência e sinceridade. Competência para guardar o tempo em palavras justas, e sinceridade para não escamoteá-lo. O jornal é apenas o refúgio tradicional do escritor que, além de precisar de dinheiro, não acredita numa verdade superior àquela que se desprende do mais humilde evento cotidiano e que, em seguida, será desmentida por outro acontecimento.

Uma coisa, finalmente, é certa: o Brasil acaba de ganhar uma literatura ao nível do seu futebol.

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