Fonte: Toda crônica. Apresentação e notas de Beatriz Resende; organização de Rachel Valença. Rio de Janeiro, Agir, 2004, vol. I, p.263. Publicada, originalmente, no periódico A.B.C., Rio, de 25/11/106.
É doloroso, depois de certa idade, depois de ter perdido muitas das ilusões de menino, vir publicamente demonstrar intolerância.
Da vida, pouco me resta de esperança e nada de ilusões, e eu não sairia a campo para dizer as verdades que aí vão ditas, se não fossem o nojo e o ódio que sinto ao ver a desfaçatez e o cinismo chegarem ao cúmulo em nossa terra, em questões de literatura.
Li nos jornais, porque leio todos os jornais, que o Senhor Miguel Calmon e o Senhor Hélio Lobo tinham sido designados para reger, o primeiro o curso de Estudos Brasileiros, na Universidade de Lisboa, e o segundo o de História da Diplomacia Brasileira, na Universidade de Harvard, nos Estados Unidos. Que parelha!
Hélio Lobo, secretário da “presidência”, como ele se intitula, é o mais presumido bobo de que se tem notícia no Brasil que escreve.
Ele não faz mais do que transcrever avisos, ofícios, portarias, decretos, resoluções e mandar imprimir tudo isso à custa do governo, na Imprensa Nacional. Dele, não há nada nos seus livros; o que há de propriedade do mesmo nas obras em que põe o nome, são os comentários mais tolos, indignos do mais humilde repórter de polícia.
É um homem desses que vai não sei para onde representar a inteligência do Brasil. Agora, eu me lembro de novo que ele vai para Harvard. É de admirar, meus caros senhores; porque essa universidade americana é famosa pelo seu ideal de brutalidade, de pugnas de football ou basket-ball, e um “alfenim” como o Senhor Hélio, que não sabe o que vai ensinar, devia menos saber dar pontapés em uma bola.
Mas este Hélio pouco conheço; Calmon, entretanto, conheço-o muito bem. Ele foi meu colega na Escola Politécnica, onde andei vagabundando e conhecendo os homens durante alguns anos da minha meninice.
Desde cedo, tomou uns ares solenes e idiotas, para impressionar toda a gente. Morava em Niterói, com uma claque de baianos, que diziam da inteligência dele as maiores maravilhas.
Calmon, que nunca tinha sido notado nos primeiros anos, de repente, graças à claque, passou a ser tido como gênio, o que não era difícil de admitir nele, em virtude de um fraque rabudo e duns precoces cabelos brancos.
De resto, diziam todos os seus claqueurs que ele possuía as virtudes de José, mas que não tinha encontrado a mulher de Putifar...
Formou-se e foi para a Bahia. Lá o fizeram lente, geômetra, geólogo, epigrafista, numismata, parteiro, aviador, escafandro; e depois o mandaram a Java, estudar o café.
O café é no Brasil a fonte de muitas riquezas, mas Calmon não quis saber de estudar o café. Voltou de lá sabendo coisas de açúcar e, com toda imponência, escrevendo no boletim dos judeus açucareiros (não cito nenhum nome), em artigo de quatro períodos, Samatra em vez de Sumatra, que é a ortografia corrente.
Daí em diante os bajuladores profissionais das gazetas começaram a dizer que Calmon era um homem extraordinário.
Houve um até, Mário Cataruzza, galopim internacional de cavações, que, como os genealogistas dos cabarets parisienses, afirmou que Calmon descendia de Turenne.
Calmon chamava-se Almeida; era, porém, descendente do meigo apaixonado de Mme de Longueville.
Calmon, que não se tinha esquecido das tolices que escrevera no boletim dos judeus açucareiros (não cito nomes), fez-se ministro ou tabelião, e praticou a ousadia de publicar um livro. Os bajuladores disseram maravilhas do livro e Miguel de la Tour d’Auvergne, parente de Turenne, julgou-se êmulo de João de Barros e de Aluísio de Castro.
O livro é o que há de mais medíocre nesta vida, mas, por isso mesmo, a Academia de Letras, que grande prazer tem com tais obras, resolveu nomeá-lo, a ele, Almeida de la Tour d’Auvergne, professor de Estudos Brasileiros, na Universidade de Lisboa.
Aí está como Turenne Calmon foi feito sabichão de coisas nacionais.
Miguel Calmon é medalhado em máquinas pela Escola Politécnica do Rio de Janeiro, mas nunca projetou um mancal. Miguel Turenne é medalhado em hidráulica pela Escola Politécnica do Rio de Janeiro, mas nunca montou um encanamento de chumbo em casa burguesa. Calmon de Soissons é engenheiro pela Escola Politécnica do Rio de Janeiro, mas nunca dirigiu uma linha de bondes em Maceió. Calmon de Sedan é lente, na Escola de Engenharia da Bahia, de Cálculo e Geometria Analítica, mas nunca escreveu nada, nem sobre as diferenciais de primeira ordem, nem sobre os sistemas de coordenadas. Mas Calmon de Turenne, de Soissons, de la Tour d’Auvergne, de Longueville, que nunca demonstrou saber nada de coisas brasileiras, esse Calmon que descende de uma grande família extinta na França, esse Calmon, esse Almeida, vai para Lisboa dissertar sobre letras, história, geografia do Brasil!...
O Senhor Miguel Calmon é o exemplo da ideia que, no Brasil, se tem de coisas da inteligência. Ele nada fez nem naquilo que estudou, nem naquilo que pretendeu; ele, se não é velho, também não é menino; tem tido todas as facilidades, mas não tem uma obra, um ensaio, uma página que diga alguma coisa dele mesmo.
Foi deputado, ministro, tabelião, epigrafista, numismata, paleógrafo, professor de Cálculo Diferencial, mas de coisa alguma dessas ele se diz entendido. Ele entende do que não entende. Sabe literatura e história do Brasil.
O Brasil, com esse amor aos diplomados, aos distintos, aos enfeitados com medalhinhas de solenidades de escola, acaba como a China, com os seus mandarins e com a sua literatura de versos de légua.
À vista de tais exemplos, pergunto: que nós todos devemos pensar sobre o rumo que as coisas vão tomando no Brasil? Que devemos ensinar aos meninos? Os pais, que devem ensinar aos filhos? As mães, que devem incutir na alma das criaturas que elas geraram? É a abnegação? É a dedicação? É a honra? É o sacrifício pelo ideal? É o estudo? O que é? Não deve ser nada disso; nada, meu Deus! O que nós devemos ensinar aos filhos, aos moços, aos meninos, é que aprendam o Bel-Ami, de Maupassant; que se façam Pachecos, mas que tenham sempre em mira prometer casamento à filha deste, para arranjar isto; à filha daquele, para arranjar aquilo, e afinal arranjar, por intermédio do casamento, tudo.
É preciso não deixar de obter umas medalhinhas nas escolas e faculdades, como as meninas das irmãs. O que nós devemos pregar aos moços não é um ideal cavalheiresco; é o ideal do Bel-Ami.