Fonte: Caderno B, Jornal do Brasil, de 16/12/1970.

Água pesada — Minha mulher e eu fomos comer carne numa churrascaria de Ipanema. Fazia um calor propriamente medonho. Indo e vindo a tarde inteira com bandejas pratos e talheres copos e cardápios e contas e trocos, entre fregueses ruidosos e impacientes, os garçons já estavam com os nervos à flor da pele. Em dado instante um deles avançou sobre o colega mais próximo, lançando-lhe uma saraivada de murros e palavrões. A turma do deixa disso interveio, conseguindo separar agressor e vítima após três ou quatro minutos de contenda. A freguesia a tudo assistiu sem demonstrar emoção especial, pois o calor que fazia justificava qualquer desatino.

Em compensação, quando já estávamos sob o toldo que leva à calçada, desabou um aguaceiro espesso como uma chuva de tranças de mulher. Vimos a água gorgolejar na sarjeta e transbordar para a calçada. Vimos estacionar em frente à churrascaria um Galaxie novinho em folha, e dele descerem uma bela mulher e o meu amigo Ronaldo. Os quais, após uma corrida de dois metros, ao se refugiarem sob o toldo já estavam completamente encharcados.

— Tudo bem? 

— Tudo bem. 

— Chuvinha boa, hem? Vamos comer?

— Não, obrigado. Já comemos. O duro agora vai ser arranjar um táxi.

— Não tem problema — disse Ronaldo. — Ei, chefe! — continuou, dirigindo-se ao porteiro da churrascaria. — Olhe aqui a chave do meu carro. Leve este casal em casa.

— Mas doutor...

— Não tem mas nem meio mas, e eu não sou doutor. Você ganha é para isso mesmo.

O porteiro, ainda rapaz, apanhou a chave, correu para o Galaxie e nós corremos atrás. Chegamos os três encharcados. E começamos uma viagem lenta, lerda e cega, não só porque avançávamos entre dezenas de outros veículos, discernindo apenas sombrios volumes além do para-brisa castigado por uma cachoeira mirim. A razão principal era esta: o porteiro não sabia guiar. Pensei: “Primeiro os garçons brigaram, era a guerra. Agora, um homem entrega o carro novinho a um indivíduo sem habilitação. A chuva trouxe alívio e cordialidade. Só espero que traga também boa sorte, do contrário esse pateta ao volante é bem capaz de nos arrumar uma colisão”...

Outra água — Estávamos no Antônio’s e fazia um calor propriamente dantesco (o ar refrigerado funciona dia sim, dia não; aquele era um dia não). César propôs:

— Vamos fazer uma loucura? 

— Você não pede, manda. 

— Vamos dar um pulinho à Europa?

— Falou e disse.

Eu gostaria de jurar que a nossa alegria era indescritível, mas não posso fazê-lo por que aqui estou, justamente, a descrevê-la... Só sei que o César, enquanto corria, enfiando decididamente os pés nas poças d’água, anunciava ao povo em altos brados:

— O Negrão é um governante honesto! O Negrão vai entregar ao Chagas Freitas todos os torós que encontrou nos cofres do Estado, no dia em que assumiu!

Água! Sublime criatura, líquida e inodora! (Depois de amanhã tem mais).

jose-carlos-oliveira