Os guias e as histórias que se contaram da Bahia estarão sempre marcados por nomes de famosas quituteiras negras, algumas recolhidas às cozinhas de famílias abastadas, uma maioria marcando nas ruas com seus tabuleiros, e umas poucas, que tiveram ajuda rica, estabeleceram-se com restaurantes, passando assim ao livro universal da Bahia, escrito em todas as línguas, por escritores e jornalistas errantes. Aqui, onde escrevo estas notas, fora do Rio e sem meus cadernos da Bahia, não sou capaz de lembrar um só nome destas mulheres suavemente gordas que faziam ponto no Terreiro de Jesus, no Elevador Lacerda, em Águas de Meninos ou ao pé da Conceição da Praia. Recordo, porém, uma Maria, simplesmente Maria, que parava ali na varanda do Tabaris, ao lado do antigo cinema Guarani, com vista debruçada para a Barroquinha. Nosso ponto de encontro, quando deixávamos o estúdio da Rádio Sociedade e a redação do Diário de Notícias. Era 1945 e nossa alma estava repleta de sonhos — sonhos que, ao menos eu, não sonharia hoje, tão velho que estou, ao peso do desencanto. Sonhávamos o povo livre, a verdade e as virtudes dos líderes. Quando morreria o último tirano fascista? Quando uma felicidade só seria a de todos, num mundo de justas recompensas e justo amor? Sonhávamos ali, em voz alta, num patriotismo desamparado, de crianças que se iriam desencantar tão depressa aos primeiros discursos pós-Estado Novo, de 1945.
Era o tabuleiro de Maria — Maria simplesmente. Gorda, de ancas sedentárias e seios maternais. Dava um tamborete, depois um prato a cada um. Deitava uma concha de camarão, outra de arroz e um ovo cozido no molho oleoso de coco e dendê. Não me lembro de comida tão gostosa em toda a minha gorda existência. Comíamos devagar, para dividir os vários sabores de cada garfada, e falávamos de política e poesia. Já os ingleses haviam desembarcado do norte da França e os tanques alemães enguiçavam gelados, para sempre, nos campos do inverno russo. Os nossos presos políticos estavam sendo reclamados em letras e clamores. Qualquer coisa de novo estava para chegar ou nós chegaríamos a uma bela e legítima praça, onde a canção seria uma só, de todos e por todos. Maria reenchia nossos pratos e escutava. Aos sábados, dava-nos sarrabulho e, lá num dia ou outro inesperado, uma moqueca com feijão de leite. Tudo sob a noite baiana, amiga e real. Nossas almas novas em folha, nesse amor ainda por dar, embora amando tanto! Ao menos isto — uma felicidade precedente: o amor nos amava.
Depois desta Maria, outra, a de São Pedro. Fez-me esquecer a primeira — a da porta do Tabaris. Ou, se não a esqueci, troquei-a pela de São Pedro. Minhas horas eram outras. Precisei viver mais dia e, de dia, era ali, no sobradinho do Mercado Modelo, em frente ao cais dos Saveiros, que íamos aos dendês. Maria de São Pedro, os dentes e o branco dos olhos mais brancos que eu já vi. Sabia do dendê todos os milagres e consequências. Quem passasse na Bahia, nós levávamos para lá. Um dia foi o Braga, com Tônia Carrero (naquele tempo Mariinha) e Aníbal Machado. Voltavam da Europa e traziam as primeiras notícias do existencialismo. Contavam de Sartre, como ele era, onde parava, quem o seguia. Anísio Teixeira ouvia e contava com acolhimento. Odorico Tavares, poeta de versos renunciados, emudecia nos olhos azuis de Mariinha. O Braga resmungava por conta própria. Aníbal, de boina, repetia os camarões. Mas um dia veio Neruda, comedor exagerado de pimentas, bom paladar de aguardente, olhos sonolentos de andino. O azeite de galinha de xinxim lhe escorria pelo canto da boca. Lá uma outra vez, dizia os seus versos com voz grave e respeitável: "Posso escrever os versos mais tristes esta noite/ A noite está estrelada e ela não está comigo".
Chamava-me de "vecino" porque morávamos em quartos parede-meia, no mesmo hotel. Pablo Neruda amou a Bahia. Maria de São Pedro levava-nos à cozinha para vermos as postas de peixe embebendo-se no ouro do dendê. Em outra viagem, chegou Augusto Rodrigues, com Clóvis Graciano. Lá, um dia, Gilberto Freyre. E nós sempre ali, porque a Bahia era uma escala obrigatória, um porto de mistérios, um cais de violeiros, uma feira de contadores de histórias, um cenário de Jorge Amado, uma religião musical de Caymmi, um prato de dendê no sorriso branco de Maria de São Pedro.
Hoje, a notícia de sua morte. Soube, simplesmente, que morreu a Maria de São Pedro. De quê, não me disseram. Se fazia sol ou se chovia, se houve flores e saudades, música e procissão, se foi de manhã ou pelo entardecer o seu funeral, nada me disseram. Se ela estava já enferma ou se morreu de repente, se estava magra ou gorda, nada mais contaram. Apenas que morreu Maria de São Pedro. Eu soube ontem à noite e comecei a me lembrar de mim, ali na Bahia. Minha ânsia política que passou tão depressa. A confiança que eu sentia em cada palavra de um discurso. O passo que me levava ao amor, mal o acenassem. O carinho contido nos meus carinhos. Depois, os meus amigos e, nisso, me vem constantemente Odorico Tavares, a quem sempre vejo, para gostar mais e aumentar as saudades. Nossa vidinha baiana, no cais do porto ou em Ipitanga, esperando gente para levar às igrejas, às praias e aos dendês. A livraria do Souza ficava na praça da Sé e lá parávamos, depois do almoço, folheando livros que nem sempre líamos. Depois, íamos aos discos da rua Chile. Era preciso ouvir muita música sinfônica, nos domingos desumanos da Barra Avenida. Descíamos para trabalhar, no velho casario do Diário de Notícias. Chegavam os jornais do Rio e dávamos graças a Deus por vivermos na Bahia.
Morreu Maria de São Pedro e, com certeza, terá um biógrafo e, com justiça, terá uma rua. Fez muito pela Bahia, essa mulher. Não lhe neguem uma placa, numa pequena rua, para que o visitante de amanhã recorde o que dela ouviu, ao ver o seu nome num muro qualquer. Isto fará parte da devoção baiana àqueles que chamaram os homens de longe, para ver e amar a Bahia. Maria fez, com o seu dendê, o que fez Caymmi em sua canção, Pancetti em sua tinta, Jorge Amado em seu romance, Marta Rocha em seus olhos azuis... Outros muitos, com o coração tocado pelas emoções do céu e do chão, do homem e da cantiga, na cidade indecifrável e amada. Recado errante: leve um botão de rosa a Maria de São Pedro.