Fonte: Vento vadio: as crônicas de Antônio Maria. Pesquisa, organização e introdução de Guilherme Tauil,Todavia, 2021, pp.478-479. Publicada, originalmente, no Diário Carioca, de 06/08/1954.
O barraco eu não vejo, porque a mataria em frente é muito espessa. Mas há um ano, através desta janela, enquanto invento histórias para escrever, assisto à vida de quatro pessoas, um cachorro bem-humorado e um casal de patos. Da casa, não sei — já disse —, mas a área da frente é mais ou menos descampada. Há duas mulheres (uma é companheira de um preto robusto e a outra seria aparentada ou simplesmente amiga) e um menino de cabelos alourados. Falam pouco. A mulher mais gorda, com uma tábua em cima de dois caixões, passando roupa a ferro, passando, passando, o menino passando e fazendo artes, o tempo passando, o dia escurecendo e as obrigações ficando para serem feitas amanhã. Amanhā, logo cedinho, eles serão a mesma coisa da véspera. O preto robusto chama o cachorro, faz-lhe um agrado na cabeça, joga um pano de estopa no ombro e vai subir a pedreira. É esse homem um dos que fazem tengo-tengo nas rochas o dia inteirinho, com o seu martelo quebrador, cujo som é limitado por quatro sinetas pontuais: a das sete, a das 11, a das 12 e a das cinco. São duas sinetas de parar e duas de começar. O resto fica para o dia seguinte, quando o herói será, também e precisamente, a mesma coisa da véspera. E quando acabar a pedreira, como é que vai ser? Mas Deus é muito bom e, já pensando nesses homens, fez diversas pedreiras no mundo.
Agora, a mulher que é esposa e a outra (a aparentada) estão sentadas e não sabem que eu as vejo daqui, tão nitidamente. Descuidam-se de cobrir as pernas, confiando nessa rama acácia que lhes trai tanto as pudicícias. As mulheres da Bahia, as que mercam acarajés e abarás, também, às vezes, são assim de sentar descuidada. O menino alourado passa na carreira e diz uma coisa que não deve. As duas o repreendem com um nome feio. Os três começam a rir. Essa intimidade, esse entendimento, esse viver à vontade me faz sentir uma densa emoção de simpatia humana por essas pessoas que estão rindo em vez de desesperar, rindo alto, sem ajuda de nada, sem haveres no dia seguinte a não ser o sol e, logo a seguir, a primeira sineta. Os dois patos, com o seu andar de half-back de subúrbio, pra lá e pra cá. O cachorro bem-humorado, aos saltos, persegue uma mariposa. Em seguida, escurece.