Fonte: Caderno B, Jornal do Brasil, de 19/11/1979.

Bem me lembro dos festivais da canção. Estive em quase todos. Os de São Paulo, os do Maracanãzinho. Momentos dramáticos no Maracanãzinho: a frágil Nana Caymmi recebendo a mais estrondosa e mais injusta vaia já endereçada por um público selvagem a uma intérprete de valor indiscutível. Outra vaia ensurdecedora, um uivo de 20 mil vozes, dirigida a Chico Buarque e Tom Jobim, pelo fato de terem escrito a quatro mãos uma obra-prima Sabiá, cujo conteúdo só hoje se abre à plena compreensão dos impacientes: era a nova canção do exílio, o hino daqueles que viviam e viveriam longe do Brasil por causa da perseguição política. Vale a recordação. Que o leitor ponha na vitrola o disco, caso o possua, confira: “Vou voltar/Sei que ainda vou voltar/ Para o meu lugar... Foi lá/ E é ainda lá/ Que eu hei de ouvir cantar/ Um sabiá...”

A maravilhosa, desvairada noite que terminaria com os festivais e com a alegria daqueles menestréis: quando na passarela o maestro Rogério Duprat se apresentou acompanhado de um seu sósia quase perfeito, o jornalista Renato Sérgio, enquanto a banda do maestro Erlon Chaves enlouquecia a plateia com o refrão de Eu quero mocotó, de Jorge Ben... Erlon Chaves saiu do palco direto para uma repartição policial, onde seria interrogado (a propósito de quê?), humilhado e, segundo consta, espancado. Algum tempo depois, sofrendo abalo de outro gênero, morreria de desgosto. Tom Jobim, encabeçando com sua assinatura as de dezenas de outros manifestantes (mas não, necessariamente, contestadores), também chamado às falas por um senhor general indignado, o qual pretendia disciplinar os artistas, tal qual se acostumara a fazer com os reservistas durante a prestação do serviço militar. Esses homens autoritários presumiam que a caserna e o Brasil deveriam ser uma coisa só. Era tragicamente ridículo...

Essas recordações subiram bruscamente à minha consciência, nítidas, frescas, com o cheiro, o som e as cores que delas se desprendiam na época em que sucediam diante de nós. Eis-me, sem menos nem mais, contemporâneo de minha memória, que nem Proust ao mordiscar aquela madeleine-microcosmo. E assim se cristalizou, afinal, em minha inteligência, uma narrativa que me azucrinou esse tempo todo, exigindo que eu a desenrolasse em palavras. E veio a propósito, pois nos últimos meses eu andava à procura de um tema suscetível de ser configurado em três ou quatro capítulos. Era a condição sine qua non de conseguir o tempo necessário a elaborar as premissas de um folhetim bastante longo e, acredito, emocionante. Durante as férias de outubro, procurei desesperadamente esse enredo, sem encontrá-lo. Já havia desistido, quando li nos jornais a volta dos festivais da canção e — bem, o resultado disso vocês já leram aí em cima. Me debruço agora ansioso na máquina: et voilá! — tenho algo a dizer!...

Não vos prometo um conto, e sim uma crônica em forma de narração. Não vos direi se a história aconteceu tal e qual, ou se nela introduzi algumas fantasias; como sempre, em suma, desconheço se aquilo vem da memória ou da imaginação. Farei, no entanto, o possível (aliás é minha obrigação) para tornar esse trabalho interessante, fácil de ler, escapo ao estigma do texto enfadonho. Enquanto estiver sendo publicado, trabalharei no anunciado folhetim, que este sim espero seja mais que um divertissement.

O drama comigo é ter nascido contador de histórias e, ao mesmo tempo, dotado de temperamento reflexivo, de forma que fico pendulando entre a carochinha e o ensaio — na acepção francesa do termo. Detesto escrever crônicas paradas. Prefiro mergulhar na corrente do tempo que flui, deixando-me levar, boiando nessa água que não molha, feita de claridade difusa, confusa, sonambúlica.... Uma história com começo, meio e fim será sempre mais agradável de ouvir do que um discurso a favor ou contra seja o que for. Por sinal que os melhores discursos, pronunciados pelos mestres da eloquência, tendem na direção da parábola. Lembrai-vos de Jesus Cristo. E se preferirdes um homem superior, mas não divino — vulnerável como nós outros — considerai aquele instante inesquecível em que Martin Luther King disse à multidão ávida de visões proféticas: — “Tive um sonho”...

Nas devidas proporções, qualquer contador de histórias é necessariamente um pensador digno de atenção, se bem que o contrário nem sempre lhe equivalha. Não conheço nada mais vulnerável às hipérboles do que um pensamento parado na contemplação de um problema refratário às impregnações da fantasia. Não conheço nada mais chato que uma ideia fixa, um ideário sem porosidade, uma ideologia sem fissuras, uma filosofia de razões e sem emoções.

Por falar em filosofia.... Após mais de 20 anos norteando a minha vida a partir da premissa de que a existência precede a essência, cheguei ultimamente à conclusão de que é justamente o contrário. Devo, pois, voltar a 20 ou mais anos atrás e repensar tudo de novo. Que trabalheira! Em todo caso, uma boa amiga me confortou assim: Será trabalhoso, mas construtivo. É preciso que você fique 20 anos mais jovem para fazer esse recaminho”. Enfim.... Mas essa é uma outra história.

jose-carlos-oliveira