Fonte: Caderno B, Jornal do Brasil, de 9/01/1977.

Foi quando você passou pelo meu sonho. Eu estava sonhando não sei com que — havia uma rua, na manhã turva dos sonhos — quando você passou. Simplesmente passou, andando naquele seu jeito vagaroso, peculiar a quem acaba de tomar um banho e vai andando lentamente para não suar. Simplesmente passou — mas quando acordei, eu que sou viciado em símbolos, não tive nenhum desejo de analisar o sonho. Fiquei pensando apenas em você. Pensei que tudo pode ter acabado e nunca mais nos reencontraremos, mas um consolo me resta: você passeia pelas ruas do meu sono, como outrora, tangível, caminhava ao meu lado. Você é uma estrela no céu do meu coração. Você, que já representou para mim o remédio dos remédios — a maravilha curativa — e que foi embora, por mais que esteja longe e diferente, continua a andar na memória, naquele seu jeito peculiar a quem ainda me ama...

Tudo o que faço atualmente gira em torno de você. Quando estou só, estou sem você. Acompanhado, comparo a nova amiga a você — e você ganha sempre, como naquele jogo dos fósforos do Ano passado em Marienbad (ah! O ano passado em Marienbad! Como fomos felizes!). De repente fico triste e me pergunto: “Por que estarei triste”? E o coração responde: “É que nunca mais, nunca mais haverá nada igual àquele instante. O amor imortal morreu”.

Você passou pela minha vida como um vendaval passa pela Flórida. Como um fantasma atravessa uma rua sonâmbula. Você foi tudo e nada. Sob a desastrosa cabeleira, ajoelhei-me. Eu te amava mais do que à chuva! E que lindo homem eu era quando você se submetia!

(Frases. Exclamações. Nada chega a dizer nada. Nada se aproxima daquela intensidade. Nenhum poder no mundo nos devolveria o ano passado. Você, estrela, você peixe no aquário abissal, imorredoura, cheia de grandes olhos, naquele vestido decotado até o umbigo e lanhado dos lados à maneira oriental, você atravessa o meu sonho e corta ao meio a minha vida. E eu simplesmente te contemplo, inalcançável estrela que um dia colhi.)

Estou zangado com você. Você toma banho demais. Mulher tem que tomar um banho e ficar cheirando a laranja. Ah! Como são traiçoeiras essas mulheres pasteurizadas! Elas dizem amar um homem e, no entanto, vão ao cabeleireiro, deixam o malandro construir um monumento com seus cabelos, e depois, quando o homem que dizem amar pretende desmanchar o penteado, elas deixam? Uma ova! Deus me defenda das mulheres excessivamente penteadas!

No entanto, no ano passado (em Marienbad ou no Leme) comemos um frango, bebemos meia garrafa de um vinho tinto de boa qualidade. Sobre o oceano gelado, a cabeça oval da lua estava pensativa como aquelas figuras triangulares que Milton Dacosta pintava em 1953, ou 4. Passara um navio iluminado, como num sonho em que há navios iluminados. A vida dos outros é um transatlântico iluminado: e eu aqui, agora, na margem, com a nostalgia dessas viagens. A noite está quente, e a solidão austera, você passou no meu sonho e desencadeou essas imagens. Você não presta, mulher, não te perdoarei jamais, porque os filhos que desperdiçamos estão crescendo no Universo paralelo ao nosso, aquele em que crescem e se desenvolvem as oportunidades perdidas...

jose-carlos-oliveira