Fonte: Caderno B, Jornal do Brasil, de 25/12/1970.

Em 1969, jornais e revistas brasileiras refletiram uma inquietação mundial, publicando artigos que começavam por esta pergunta: — Deus morreu? Era, naturalmente, uma indagação prematura e mesmo extravagante, pois não se viu neste século mais intensa fome de Deus do que a da juventude da presente década. Porém a inquietação, formulada com sinal trocado, permanecia. Se jornais e revistas tivessem perguntado: Deus ressuscitou?, acabariam descobrindo isto: — Sim, Ele ressuscitou!

Clara como água me parece essa evidência. Os hippies, com suas flores emblemáticas, com sua disciplina de paz e amor, reinauguravam a vida religiosa. Os universitários das grandes cidades procuravam Deus através do enganoso caminho das drogas, e até no extremismo político muitas vezes se localizava essa fome desatinada. Quem não encontrava resposta (alimento) na tradição cristã — identificada com a autoridade paterna, seguia no encalço de zen. A dieta macrobiótica, a desilusão quanto à eficácia das guerras e a orientalização da música dos Beatles, em sua fase final, são indicações seguras.

Sendo a música, por excelência, o meio de expressão dos jovens de hoje, podemos verificar que, no Brasil, o ano de 1970 assinalou, primeiro, o ressurgimento do ufanismo nacional, e em seguida, a intromissão de Deus nos negócios diários. Jorge Ben deu a pala, e teria seguidores ilustres:

“Moro num país tropical Abençoado por Deus”...

Um momento. A religião católica (no caso) também invadiu os canais de televisão do mundo inteiro, no curso do Campeonato Mundial de Futebol. Primeiro foi um jogador tcheco, ajoelhando-se na grama e fazendo o sinal da cruz. Alguns dias depois, veríamos Jairzinho repetindo a cena, só que acrescida de uma rápida e contrita oração, adivinhada, mais que ouvida, no movimento de seus lábios e no vigor de suas mãos cruzadas sobre o peito. Lembro-me de que, estudando a repercussão desse fato entre amigos meus, alguns ateus e outros católicos desgarrados, obtive a suspeita de que as pessoas em geral se cansaram de viver na solidão cósmica. É a fome — a qual corresponde a um alimento. Um jovem pensador existencialista, acostumado a interrogar a droga e a contestação, foi acordado um dia desses pelos representantes armados da autoridade. Mudou de roupa, fez a mala e já ia seguindo para o xilindró político, quando a mulher dele, a graciosa mulherzinha dele disse: “Meu filho, acho bom você não sair antes de acender a vela para o seu santo”. Ele acendeu a vela e a colocou no pequeno altar improvisado no quarto de dormir. E um artista, a quem perguntei como explicava que um pipoqueiro humilde tivesse desencadeado a mais impressionante homenagem que já vi a multidão tributar a um cantor, esse artista, memorizando os acontecimentos meses depois, e falando com absoluta sinceridade, respondeu:

— Aquele pipoqueiro.... Eu procurei aquele pipoqueiro, ia lhe dar uma boa nota... Mas ninguém sabia quem era ele... Rapaz! Aquele pipoqueiro só podia ser São Benedito! 

Continuemos. O comportamento religioso disputa com o orgulho brasileiro o primeiro lugar entre as preocupações dos compositores e cantores de que se falou ao longo deste ano. Ouçamos o que dizem dois compositores universitários, pela voz do MPB-4:

— Rosa me abandonou! Meu Deus, por quê?

— Nem Deus sabe o motivo... 

— Deus é bom!

— Mas não foi bom pra mim....

E vejamos um negro esplêndido no palco do Maracanãzinho, ao terminar a descrição das aventuras e perigos que nos esperam na BR-3:

— Meu Deus! Meu Deus! 

Tim Maia colhe na fonte a crendice nordestina, transformando em sucesso musical a lenda do padre Cícero. E com toda naturalidade, sem pieguice ou pretensão, Roberto Carlos domina dezembro com estes versos:

— Jesus Cristo! Jesus Cristo! Jesus Cristo, eu estou aqui... 

Portanto — louvado seja Deus...

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