Fonte: Vento vadio: as crônicas de Antônio Maria. Pesquisa, organização e introdução de Guilherme Tauil,Todavia, 2021, pp. 174-175. Publicada, originalmente, em O Globo, de 17/04/1967.

Conhecer mais uma pessoa, digamos, uma mulher, levar em conta (isto é importante) a primeira ideia que ela nos causa. Examiná-la com atenção e demora. Ouvi-la o mais possível, mesmo se com isto lhe causamos a impressão de que só ela está sendo conhecida. Nós já havíamos, nós já éramos e, sobre nós, seria inútil pensar aquém e além, tirar ou acrescentar.

Depois, dar-lhe com simplicidade uma alegria; no caso, trazendo-lhe alguma coisa de novo que fortaleça a sua fé ou lhe proporcione uma súbita esperança; ou, quando nada, darmos-lhe uma emoção de tranquilidade. Descobrir, logo depois, qual seria aquele poro por onde entraria aquela palavra, ou aquele sopro que nos transferiria, em parte, para sua vida.

Conhecer-lhe, o mais breve possível, a casa. Ouvir-lhe os discos preferidos. Ver-lhe o álbum de fotografias antigas. Tudo em silêncio, mas sem espírito de perícia policial. Prestar atenção ao nome familiar que ela mais repete — quase sempre uma tia amiga e compreensiva. As notas de cobrança, os recados escritos que veremos, casualmente, nas imediações da cozinha e da copa. A geladeira. Tanto de uma mulher, na geladeira! Onde se poderá saber quem pensa e quem não pensa no dia de amanhã (as que pensam guardam a metade do creme, a metade da maçã). Os livros da estante. Ou os que estão mais ao alcance, na mesa de cabeceira, por exemplo. O banheiro. O tamanho e a espessura das toalhas. O talco, os sais, os sabões, os cremes, os dentifrícios, os óleos, as esponjas e escovas. Numa simples visita ao banheiro da amiga recente nós a conhecemos muito mais que após 24 horas de interrogatório. Seu cuidado consigo mesma, seu cuidado transferível às pessoas do seu bem-querer. Seus hábitos e bons gostos, sua capacidade, enfim, de amar o próximo como a si mesma. Tudo ali, entre os azulejos e as frascarias de uma sala de banho. Depois, abrir-lhe as janelas da casa. Ver a paisagem e a vida que cercam sua vidinha. O todo dia implacável dos seus olhos. 

No dia seguinte — é preciso não esquecer, durante um só minuto, que ela é feita de sanguinações e resulta de estímulos —, na mesa do almoço, você lhe fará o pão com manteiga enquanto esperarem a carne e as batatas. Ela o sentirá como o amigo necessário. Pegará, de repente, em sua mão, e baixará os olhos sobre o prato. E nisso lhe pedirá, certa de que é de uma maneira vã, em pura perda, que você fique ali, para sempre... ou o mais possível — vá lá. Ela sabe dos imponderáveis da vida, sabe que está pensando em milagre, por isso baixa os olhos ao prato. Você, então, é o rei. É aquele homem domingueiro e bem almoçado, cheirando a lavanda fraca, que tem, e sabe, mais uma amiga. Resta-lhe retribuir, meu caro senhor.

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