Fonte: Caderno B, Jornal do Brasil, de 6/01/1974.

Começo o ano adoentado. Não será bom começo, mas penso que é assunto adequado. Há muita gente na cama, em casa e nos hospitais, e que passa o tempo lendo jornal. Como eu: leio jornal, ouço rádio, soluciono as palavras cruzadas da Manchete. Na hora de tomar injeção, torno-me irascível e exijo que me sirvam pílulas. Aproveito o tempo restante para fazer um exame de consciência. Tempo, com efeito, é o que um acamado tem de sobra.

Longe da fumaça dos bares, das discussões boêmias, da caça às mulheres, sinto que até hoje não passo de uma criança. Em outras palavras, não tomo juízo. Meu estilo é o de Ipanema: responsável, apaixonadamente interessado nos assuntos populares e sem responsabilidade alguma nos negócios particulares. Irresponsável quer dizer: despreparado, ingênuo, canhestro. Vejo na televisão os ingleses andando de charrete por causa da falta de gasolina e outras dificuldades coletivas. Se tal futuro estivesse reservado a toda a humanidade, neste fim de século, eu me sentiria imensamente feliz. A sociedade de consumo raramente me pega. Nunca desejei possuir um automóvel, como nunca aprendi a andar de bicicleta. Sou brilhante, imbatível mesmo, apenas como datilógrafo.

A projeção do meu ser ideal se torna mais fácil se imaginarmos tenha eu recebido o grande prêmio da Loteria Esportiva. Seria eu, então, um homem livre e poderoso; poderia fazer o que bem quisesse. Pois bem, que faria eu? Como todo mundo, já fruí muitas vezes tal sonho, de modo que colocarei em ordem as diversas providências que tomaria:

1. Checkup. Ficaria no hospital, rodeado de sumidades médicas, estudando meu organismo em todos os aspectos. Finalidade: sair dali tinindo para a nova vida.

2. Uns 30 dias, não menos e talvez mais, de silêncio rigoroso. Não abriria a boca para falar com ninguém. Finalidade: expurgar de minha consciência o máximo de palavras inúteis. No fim desse período de incomunicabilidade, poderia vangloriar-me de ser um poeta.

3. Reuniria os amigos mais chegados num cruzeiro marítimo pelo mundo. Europa, França e Bahia. 

4. Estudaria piano.

5. Iria à Holanda especialmente para rever um quadro de Vermeer.

6. Construiria uma escola para as crianças de inteligência superior, ricas ou pobres.

7. Curiosamente, estou certo de que a bebida não mais teria importância na minha existência. Bons vinhos durante as refeições e conhaque em seguida; nada mais. (Isto, naturalmente, sem contar com a tremenda festa que daria a Ipanema, no dia xis da minha nova personalidade.)

8. Escreveria um livro descrevendo as experiências de um milionário. (Minha vida, mesmo agora, tem sido tão fantástica que não preciso inventar personagens; aliás, sou um personagem inventado por mim.)

9. Visitaria o santuário de Fátima, não sei à procura de quê. 

10. Recolher-me-ia à minha mansão, para estudar e, como Malraux, tornar-me um erudito.

São tais os meus projetos, quase todos irrealizáveis. Agora vou dormir um pouco e espero que os demais acamados, estimulados por mim, ponham-se a sonhar por si.

jose-carlos-oliveira